El Agua – A Força Destrutível da Tempestade como Analogia para a Tragédia Social

“And he who would not languish among men, must learn to drink out of all glasses; and he who would keep clean among men, must know how to wash himself even with dirty water.”

Friedrich Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra

 

Um rio contaminado e amaldiçoado é o mote para a primeira longa metragem de Elena López Riera, El Agua, uma coprodução francesa, espanhola e suíça, estreada na Quinzena dos Realizadores do 75º Festival de Cinema de Cannes e no Festival Internacional de Cinema de Toronto, em 2022. Neste filme, toda a mitologia é uma metáfora para abordar a conflituosa relação emocional das novas gerações com as suas raízes culturais mas sobretudo familiares. O filme conta com um elenco maioritariamente feminino, sendo os principais papéis atribuídos a três mulheres que formam o foco geracional da cinematografia, Luna Pamies, Bárbara Lennie e Nieve de Medina, que representam uma família marcada pela força e poder matriarcais.

A acção passa-se no sudeste de Espanha, na província de Alicante, mais concretamente na vila de Orihuela, tendo como pano de fundo uma superstição local sobre mulheres predestinadas ao afogamento em enchentes do rio local, imundo e absorvido pela tragédia, enquanto tempestades se aproximam. O resgate não se aplica somente ao salvamento das casas mas também das almas, sendo que a única esperança desta população está no céu e não na terra. Tal como no filme El Planeta de Amalia Ulman, também a Espanha de Elena Riera se esgota num lugar à beira de uma extensa estrada nacional, marcada pela presença de camionistas numa constante mas efémera passagem e de inúmeros outdoors que notificam que tudo ali “se alquila”.

É neste vazio social e cultural, que grupos de jovens cedo têm de optar entre a apanha de fruta nos campos e trabalhos fugazes nas fábricas de embalamento de laranjas ou partir para Madrid em busca de um sonho tão pessoal mas ao mesmo tempo tão comum.

A Água é, por outro lado, a narrativa mágica e também memorial da adolescência da realizadora Elena López Riera (nascida em Orihuela), que nos descreve o sentimento de “despertença” àquele lugar e o facto da vila se tornar um local cada vez mais impessoal à medida que a mulher dentro dela cresce e floresce. Neste filme, a mitologia da água aparece sempre em forma de conflito (seca vs. cheia; calmaria vs. violência da sua passagem) e a inundação da cena final demonstra a força destrutível da tempestade como analogia para a tragédia social e a invisibilidade das populações destas regiões esquecidas e ostracizadas na sua estaticidade temporal.

Segundo uma velha crença popular, a cada nova enchente do rio, as mulheres que têm a “água dentro de si” estão destinadas a desaparecer. Desta forma, um dos aspectos que mais é realçado no filme A Água é a predilecção pelos temas do oculto, no qual a oralidade e as crenças esotéricas trazem-nos o relato das curandeiras, que com recurso a mezinhas e bruxarias, recorrendo obstinadamente à transcendência, resolvem todos os assuntos pessoais do seu pueblo, da saúde ao amor. Porém, a destruição causada pelo fluxo da água na sua violenta passagem, nem por elas consegue ser solucionado. Como dizia Teixeira de Pascoes, “(…)o homem é feito de água. Seria uma estátua incolor e transparente, quase invisível, se não fosse a armação de pedra em que se firma e as várias imagens misteriosas reflectidas na sua superfície”.

Por outro lado, a realizadora sublinha que foram escolhidas actrizes profissionais e não profissionais de forma a tornar a acção mais genuína visto que a inocência e a pureza de quem realmente vive naquele meio rural só poderá ser representada por aqueles que levam em si a aspereza daquela apatia e torpor. Tal como em Alma Viva de Cristele Alves Meira, neste filme, a futilidade urbana trazida pelas redes sociais e o crescente desapego com as tradições, gera um conflito emocional mas sobretudo geracional.

Por fim, todos os aspectos cénicos são importantes para deslindar o fluxo da acção e tudo é propositado, mais especificamente o reforço do tabu e do pudor representados pela paixão dos jovens Ana e José, cujas famílias denotam relações desavindas desde o passado. Aqui, a modernidade e a superstição andam de mãos dadas e isso é claro na cena em que o jovem casal entra na Igreja com roupas pouco adequadas ao local, blasfemando o lugar devoto e roçando o profano através de uma tentativa frustrada do rapaz beijar a rapariga naquele sítio sagrado. Neste filme, parece que qualquer acção tem uma carga hermética e obscura, terminando como começou, com a corrente a seguir o seu percurso. Sempre incerto.

Concluindo, em El Agua, Elena Riera valoriza o destino como um instrumento não só para infligir medo e reprimir desejos, mas também como meio de aceitação de uma estrutura social estabelecida, recorrendo às lendas, crenças e contos populares. Esta componente é acompanhada pela escolha bastante pormenorizada dos locais da acção, dos tempos e do enquadramento da câmara. Denota-se uma proximidade provocativa aos corpos dos actores, confrontando-os e perturbando-os com a realidade de um território acidentado, queimado pelo Verão e envolto na atmosfera eléctrica que antecede uma tempestade.

Rita Cadima de Oliveira