Dispus-me recentemente a auxiliar um artista marginalizado na rodagem de uma série de diálogos da sua autoria, para o propósito de registo e de sua assistência ao ensaio. Infelizmente, o trabalho teve um desenlace desastroso, insalubre: um mau período na nossa relação. Convém primeiro explicar o meu método: para o acompanhamento visual, usei fotogramas de locais relativos às descrições dos textos, mas editados de modo a “deixarem de ser fotografias”: dava início a certas aberrações cromáticas, diluía os traços, tudo ficava mais figurativo e próximo da pintura.
Do acompanhamento ao primeiro diálogo: “Telegrama a um enfermo”
Construí também para cada cena o seu respectivo acompanhamento sonoro, e isto consistia numa cama auditiva que reflectisse, de um modo lato, o ambiente em questão. Especificamente: se uma dada cena ocorresse junto a um corpo de água português, em contexto de anoitecer, adicionava o som das seguintes coisas: vento, grilos, rãs, libelinhas, moscardos-de-água-doce, leve barulho eléctrico. Não buscava nisto uma riqueza, uma complexidade ou carácter subtil; qualquer um destes sons poderia ser encontrado no Youtube, na sua iteração mais banal. Era crucial que assim fosse, pois o som do grilo, aquele que nós conhecemos de imediato, na sua forma mais irredutível, mais elementar, o som da rã, isto são coisas que cabem num ficheiro de segundos, um ficheiro que conhecemos. Existe nestes mp3 algo de genérico, de absoluto. Por isso, nos meus acompanhamentos, nunca necessitava de qualquer orçamento; não gravava, quanto a ruídos, absolutamente nada de novo, e não partia ao conhecimento de novos grilos. O grilo modelo, o grilo comprimido, em ficheiro, era não só o que bastava para o reconhecimento como aliás o caminho directo para uma recolecção pura, original, do ser. Neste sentido, o meu trabalho aproximava-se mais do CD-ROM pedagógico, infantil, do género “férias com as personagens”, ou da divisão do mundo em “locais”, como nos manuais de língua inglesa do pré-Bolonha (a cozinha; a escola; o restaurante; o aeroporto) do que da arte do field recording, de um aural patenteado, e de resto muito pouco me interessavam estas segundas coisas. O som de qualquer espaço do mundo poderia, e devia, ser recriado no meu computador, de um modo simples. A técnica tinha sensibilidades japonesas, remontantes ao final dos anos noventa. No entanto, há muito que a tornara minha.
Esta manhã, o actor pediu-me que pusesse tudo isto de parte. Passara-me ao lado, disse, por completo, a questão do rosto. Era esta a sua acusação, o factor que me incriminava. O meu trabalho era interessante, mas não filmara o discursivo, o locutório, e deveria refazer tudo. Começaríamos de seguida: o primeiro tomo seria recitado ali, na sua casa, uma vivenda com paredes de pedra simulada e ligações vagas, de anteriores proprietários, ao período das ocupações napoleónicas (não primava na história do imóvel uma grande clareza). Deveria filmá-lo a ele e à janela. A janela aberta, e, em primeiro plano, ele. Depois faríamos o mesmo com os restantes textos, bom, o mesmo não, poderia haver a introdução de alguns elementos, enfim, uma encenação.
Eu disse-lhe que não podia. Que me estava a pedir mais de onze horas de vídeo filmado para de seguida o montar, sem qualquer remuneração. Que trabalhava no dia seguinte. Disse-lhe, em específico, a seguinte frase: “Não sei o que é que tu pensas que isto é”. Eu estava evidentemente magoado.
“Onde filmas amanhã?”
Forte da Casa, disse-lhe. Piscinas municipais. São diálogos de balneário. Os míudos saem dos campos, aprofundam as rivalidades. Há um ambiente vivo. Isto acontece, no cinema.
“Se escreveres um filme para mim, e eu te pedir que apareça um pequeno monstro castanho-claro, desengonçado, mais pequeno do que um humano, estaremos automaticamente a plagiar o E.T.? De onde vem uma ideia como esta?” perguntou-me.
“Se lhe mudares a cor?”
“De que cor poderia ser?”
Coloquei a câmara a gravar de novo: tinha a presciência de uma resposta.
“Não sei. De que cor poderia ser?”
“Azuis, amarelos, verdes, tudo o que for vivo, energético, remete para o exotismo e para a fantasia, para os venenos excêntricos. Teríamos necessariamente que dessaturar. Não demasiado escuro, ou seria muito sinistro. Demasiado claro e corríamos o risco de um universo adolescente. De que cor pode ser o pequeno monstro se não for castanho-claro?”
Disse-lhe:
“Em 2016 saiu um filme nos circuitos de festival: Der Nachtmahr, “O Pesadelo”, de um alemão auto-intitulado com a alcunha de AKIZ. Aqui, a estranha longa passou no Cinema Ideal, ao abrigo do IndieLisboa, nesse ano. A protagonista é visitada, e mesmo atormentada, por um pequeno monstrinho de cor castanho-clara. Se eu escrevesse o teu filme, estaria a plagiar o E.T, ou estaria a plagiar o alemão?

O que há de inevitável nesta cor? A imagem do E.T. doente no chão, lívido, a morrer — é isto que é assim tão forte? O que aconteceu às pessoas que viram isto acontecer, que viram isto acontecer nos ecrãs? Algumas de entre elas tornaram-se cineastas, querem agora passar “isso” a outros. Mas o que é? O que nos diz?
“Eu não vi o alemão. Tu é que ficaste com isso na cabeça. Aumentas as tuas hipóteses de cometer plágio.” advertiu-me.
“Mas tu fazes ideia de quem é que te está a filmar?”

“Ganha juízo.”
Um momento de silêncio.
“Como sabes”, disse-lhe, “quando os trinta e nove membros do Heaven’s Gate se suicidaram em 97, para poderem apanhar a boleia do cometa, deixaram, estava previamente acordado, um casal, um bonito casal, de elementos vivos, para fazer manutenção do site da seita, para mantê-lo intacto. Além disso, para mantê-lo semioticamente intacto. Pensa nisto, porque é crucial. Os líderes intelectuais do culto estavam perfeitamente cientes do poder da imagem, do poder do logo. O vídeo de recrutamento. É de uma inteligência muito significativa que tenham encarregado dois deles para ficarem para trás e serem os guardadores destes elementos.”
“Devemos então legar a alguém que cuide dos nossos filmes para além da morte?”
“Que os mantenha de forma a reiterarem o seu efeito, é claro. A exercerem o seu poder de influência. Não há nada de ridículo nesta noção, pelo contrário, é sine qua non no trabalho de practicamente qualquer programador. A imagem tem de sobreviver. Adicionalmente, tem de modular caminhos de vida, sequências pessoais.
Eu imagino isto: entrar numa escola à socapa, saltar as cancelas de segurança, correr para pousar uma câmara na frente de crianças e perguntar-lhes: ‘O que é o amor? Amas alguém? Gostas dos teus pais? Tens medo de morrer?’ Pessoas todas mascaradas de animais, em fileira. Como é que se pode perder isso?
Quorum (Rafael Fonseca, 2023)
Há uns anos atrás, a Ucrânia era o país mais barato para se filmar. Isso mudou com a iminência do estado da guerra, com as análises de risco instáveis. Agora, somos nós. Internacionalmente, todos querem vir filmar a Portugal neste momento. As nossas análises de risco são satisfatórias. O dinheiro flui, flui até demasiado — a disponibilidade dos fundos derrapa para o ano orçamental seguinte. A grande cinecittà. O nosso território; Centro, Alentejo: os estúdios de cinema do Mundo. Já imaginaste o que pode acontecer? Aqui? Nós não fazemos ideia daquilo que é possível na imagem em movimento. Espera. Não fazemos ideia daquilo que é possível na imagem em movimento, ainda. Mas faremos. Faço tenções de estar vivo para o saber”.