Dossier Wim Wenders, Vol IV – The American Friend (1977)

Gil GonçalvesJulho 31, 2024

What’s wrong with a cowboy in Hamburg?

 

Há filmes fundados em histórias e outros em ambiência e perguntas. Nesta segunda categoria, os enredos poderão ser mais ou menos definidos, mas as visões autorais em que se espraiam raramente vão desembocar em respostas concretas ou, pelo menos, claras. The American Friend é um destes filmes, onde o enredo mínimo e aparentemente direto persiste em iludir explicações. Não falamos apenas das liberdades criativas a que Wim Wenders se entrega na adaptação de Ripley’s Game, de Patricia Highsmith, mas também de uma certa letargia melancólica que, embora presente em muitas obras noir que American Friend homenageia, parece desviar-se dos itinerários principais de um filme “criminal”. A ação, a violência, a estética, ainda que cuidadas, não são fins em si mesmos. Remetem-nos, ao invés, para um caminho mais sinuoso, propositadamente enevoado, para sugerir temas maiores, ilustrados em pequenos momentos simbólicos, entre (ou mesmo fora de) linhas de diálogo, enfim naquilo que intuímos.

De entre todas as perguntas que American Friend nos coloca, direta ou indiretamente, há uma de partida que poderá conter a sua chave – no sentido em que une várias escolhas inusitadas dentro e fora da diegese. Pois então, what’s wrong with a cowboy in Hamburg?, pergunta Dennis Hopper a Nicholas Ray, num desleixado loft nova iorquino. Surgem logo vários porquês: porquê Hopper – impetuoso e imprevisível enfant terrible da contracultura de Hollywood – a representar o contido, metódico e maquiavélico Tom Ripley? Porquê fazê-lo com um chapéu de cowboy e indumentária própria de western – quando é sabido, por livros e outras iterações audiovisuais, que Ripley prefere fatos de alfaiate e toda a sumptuosidade da burguesia europeia? E porquê arrancar este filme no SoHo e continuá-lo em Hamburgo, em vez de Paris, Londres ou Roma? O motivo ulterior só poderá ser aflorado em diálogo com o outro protagonista do filme e com a trama que primeiro opõe as personagens centrais e depois as aproxima.

Jonathan Zimmermann (Bruno Ganz) é europeu, homem de família, tímido, artesão de molduras de profissão e tem uma doença grave e potencialmente fatal. É, enfim, um total contraponto para o errático con man americano de Hopper, que se dedica ao tráfico de quadros falsos, é um diletante solitário, amoral, rico, mas sem nada por que viver. O primeiro encontro destes homens ocorre num leilão de arte, onde Jonathan se apercebe do esquema de contrafação de Ripley. Por saber das suas intenções recusa-se a apertar-lhe a mão, vexame que Ripley não só não esquece como resolve vingar. Ao saber da doença de Jonathan, espalha o rumor de que o seu estado de saúde é ainda mais precário, vendendo essa informação a Minot, um antigo parceiro de crime, que procurava um assassino a soldo. Com a promessa de uma soma avultada de dinheiro para a família e a falsificação de exames médicos, Minot convence Jonathan – “um homem sem nada a perder” – a cometer o seu primeiro crime. A entrada do pacato Jonathan numa segunda vida é acompanhada de perto por Ripley que, intrigado, se aproxima dele para formar uma peculiar amizade e, de caminho, desestruturar a sua vida familiar.

Não será preciso um grande esforço de imaginação para perceber que as preocupações de fundo de Wenders são, aqui, essencialmente morais. Ademais porque, contrariamente à obra de Highsmith, não são as maquinações de Ripley (ou o próprio Ripley) o foco principal. É Jonathan e o seu arco de personagem. Por outro lado, não será descabido extrapolar as características antitéticas de Ripley e Zimmermann para um choque entre sistemas – isto é: modos de vida, valores, visões de mundo, economias – e as suas consequências, à luz do tempo em que The American Friend foi lançado. Pensemos que mesmo antes do advento do neoliberalismo, e antes sequer de se sonhar com o fim da Guerra Fria, a globalização já se começara a gizar no mundo ocidental, com os Estados Unidos à cabeça. Encontramos ecos desta realidade na montagem – que “liga” Hamburgo, Nova Iorque, Paris e Munique por sequências de cenários urbanos praticamente indistintos -, nos diálogos – “we’re going to the American Hospital. It’s the best in Paris“, diz Minot a Jonathan, antes de aldrabar os resultados das suas análises – e no próprio tom deste filme – que, com todas as características de um “filme americano”, no papel, trunca propositadamente grandes trechos do enredo, favorecendo uma lógica mais simbólica e um ritmo altamente incaracterístico para Hollywood.

Assim fará mais sentido a escolha de um Tom Ripley cowboy (símbolo supremo da mitologia americana), que se auto define como alguém que “faz dinheiro e viaja muito”, mas que inveja a simplicidade de quem “cheira a madeira e tinta”; que preda e corrompe um europeu doente, levando-o a trocar valores de séculos (familiares, laborais, culturais) – primeiro pela necessidade, depois pelo deslumbre – por um estilo de vida mais livre de compromissos morais e, claro, por dinheiro. Será igualmente sintomático que este Ripley nos surja alienado na Europa, sozinho numa exorbitante mansão atulhada de quinquilharia pop art, num misto de depressão e tédio, à procura de uma noção de amizade que passa pela transformação do outro em si próprio. A busca incessante por uma substância que nunca se conheceu. A incapacidade de se reconhecer num vácuo, que Hopper – afogado, à época, em álcool e drogas, e com carta branca para improvisar em diversas cenas – encarna na perfeição. Tudo nele é opaco, imprevisível, insondável. Todo o mal que o “seu” Ripley faz parece dever mais ao impulso do tédio do que a requintes de malvadez. Deste modo, o seu casting revela-se altamente inspirado para os desígnios incaracteristicamente pessimistas de Wenders.

Convém, apesar de tudo, que não nos percamos apenas em intuições e extrapolações. Isto porque sendo verdade que Wenders sempre se debruçou sobre questões de nacionalidade, diferenças entre europeus e americanos e os efeitos de um lugar no indivíduo, aqui há uma outra preocupação mais basilar que o une a Patricia Highsmith, como escreveu numa carta a Andrew Wilson (autor de Beautiful Shadow, uma biografia da escritora americana):

“Her novels are really all about truth, in a more existential way than just ‘right or wrong.’ They are about little lies that lead to big disasters. As I am really obsessed with the idea of ‘truth’ and ‘beauty’ being identical notions, you can imagine I was attracted by Highsmith’s own preoccupations.”

 

E aqui acedemos ao nível mais terreno de American Friend, muito mais ligado a Jonathan Zimmermann, o homem comum. Não é no lado pulpy e hiperbólico do thriller (a queda do protagonista numa teia internacional de crime) que as consequências da falta de verdade se fazem sentir de forma mais pesada, mas no âmbito familiar e pessoal. São as mentiras que Jonathan vai acumulando, perante a mulher, mas também perante si próprio, que o corrompem. Nas interações dele com Ripley, começa a formar-se uma fúria de viver que extravasa as noções de proteção e dever familiar e se torna numa pulsão egoísta e amoral. Há uma sensibilidade quase telenovelesca na forma como Wenders trata essencialmente uma crise de meia idade marcada por laivos homoeróticos – e aqui teremos de contrastar a química extraordinária entre Hopper e Ganz, marcada por uma dramaturgia assente em diálogo esparso, olhares insinuantes e improvisos, com as dinâmicas mais insípidas e palavrosas entre marido e mulher -, mas há também uma noção mais profunda, amarga e trágica de doença social e espiritual que perpassa todo o caminho de Zimmermann. Talvez por isso Wenders se dê ao trabalho de alterar os destinos dos protagonistas (punindo ambos) e de criar uma atmosfera muito mais melancólica e pesada, quer do que os livros de Highsmith, quer do que qualquer outra adaptação da “Riplíada” ao cinema. Do macro ao micro, Wenders lamenta a falência moral e acusa a fealdade de um mundo que se revela tanto mais falso quanto mais aliciante, livre ou faustoso se apresenta.

Todo o filme é marcado por esta dualidade. Se de um lado temos uma cinematografia arrojada – com cores vibrantes, uso (à época, pioneiro) de luzes fluorescentes, que “falsificam” os cenários,  sequências de ação bem coreografadas e jogos de sombras expressivos – , do outro somos assolados por uma narrativa onde vários acontecimentos relevantes são elididos, bem como por uma montagem que nem sempre estabelece nexos de causalidade entre eventos; que oscila frequentemente entre cortes abruptos e planos demorados, onde o enredo não avança (ou se secundariza). É uma constante tensão entre a homenagem e a desmontagem de género, que nos leva a questionar o que realmente valorizamos num thriller (ou em qualquer filme): as imagens belas pelo simples apelo estético ou as que nos dizem qualquer coisa; o enredo escorreito ou o que nos deixa algo, depois da viagem do ponto A ao ponto B. Não deixa de ser irónico que tenha sido deste amor-ódio a Hollywood, e desta desconfiança para com a crescente “americanização” da Europa, que tenha nascido a consagração de Wim Wenders na indústria (e mercado) do outro lado do oceano – que não mais lhe fechou portas. Ele, que estava tão preocupado com os estragos que um cowboy causaria em Hamburgo, acabou por ser quem disso retirou maior proveito.

Gil Gonçalves