Dossier Wim Wenders, Vol III – As Asas do Desejo (1987)

Miguel AllenJulho 25, 2024

In Berlin, by the wall…

 

A grande cidade e as pessoas. E o cinema enquanto olhar fantástico e caridoso, ubíquo, sobre um lugar e um tempo. Der Himmel über Berlin (As Asas do Desejo, a partir do seu título inglês, mas, mais literalmente, “O Céu sobre Berlim”) foi um regresso de Wenders à sua Alemanha natal, após tempos de viagem, e nomeadamente uma residência de oito anos nos Estados Unidos (onde realizara, em 1984, Paris Texas). Himmel nasceu de uma manifesta vontade de registar aquela cidade naquele período específico, um relato fantasioso de coisas terrenas e interiores, ou o retrato das coisas mais comuns através da magia que “as envolve”.

Berlim, 1987, vésperas da queda do Muro. As nuvens que cobrem a urbe e os olhos bondosos de Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) – os dois anjos “da guarda” que transportam a trama – sobre as crianças, os adultos, e os “mais velhos”, que  conheceram o mundo de “antes”. O filme inventa uma teia entre “todos” os indivíduos da cidade, através da figura conciliadora dos seus anjos, partindo daí para desenhar uma reflexão mais aprofundada (ainda que sempre sensorial e subjectiva) sobre a memória impressa naqueles lugares urbanos, nas suas ruínas e interrogações.

 

Com argumento de Wenders a partir de diálogos e ideias de Peter Handke (e ajuda de Richard Reitinger), o filme desce desse seu “céu” aberto para colocar a câmara ao nível das pessoas. Os seus anjos eternos (visíveis apenas às crianças) estendem um ouvido curioso e uma mão amiga a todos os que os rodeiam. E será a partir da experiência individual e dos monólogos de cada um dos “figurantes” que o filme experimentará um peculiar retrato, global porque intimista, quiçá uma sinfonia, de cidade. A acção focar-se-á em três lugares chave, centrais à trama e mensagem do filme, entre os quais os anjos divagarão de uma forma algo livre. Primeiro, a belíssima Staatsbibliothek, desenhada por Hans Scharoun, enquanto templo do discurso, do pensamento, e da História, percorrido pela figura do velho Homer (Curt Bois); segundo, o Circo Alekan – campo do sonho e, sim, do desejo –, lugar de Marion (Solveig Dommartin), anjo branco, pomba, e trapezista; e por último, a ruína militar, cenário “de época”, qual espelho da memória (recente) da cidade e do mundo, que serve de introdução a Peter Falk, esse desgastado mas afável Columbo, chegado dos Estados Unidos para participar num filme sobre a Berlim da Segunda Grande Guerra.

 

Será do contacto com esses três polos humanos (a iteração é aqui necessária) que Damiel, o belíssimo anjo de Ganz (de voz, em alemão, perfeitamente divina), quererá “ser”. Sentir um peso, existir num agora, trocar o infinito pela mortalidade terrena, e enfim tocar.  Damiel, apaixona-se pela melancólica trapezista, pelo seu sonho e tristeza (não se coibindo de observar atrevidamente o seu dorso nu), e escolhe descer à terra, para experimentar o prazer das sensações e sentimentos a cores (num recurso formal que nos parece algo desnecessário) :

“(…) chegar a casa depois de um longo dia para dar de comer ao gato, como Philip Marlowe, ter febre e dedos negros de ler o jornal, ficar entusiasmado não só pela mente mas, finalmente, por uma refeição, pela linha de um pescoço junto à orelha. Mentir! Por entre os dentes. Sentir os ossos que se movem enquanto caminhamos. Enfim adivinhar, em vez de saber sempre. Ser capaz de dizer “ah” e “oh” e “ei” em vez de “sim” e “amen”.”

O humanismo de Wenders – essa imagem do mundo onde todos parecem se “entre-ajudar”, um mundo de valores manifestamente humanos, apesar das evidentes e recorrentes provas em contrário – talvez seja difícil de aceitar nos dias de hoje (ou talvez não, visto o seu sucesso de bilheteira recente). Ou talvez fosse uma posição mais natural em dias de optimismo relativamente maior, como no final dos anos 80, na Europa, quando se prenunciava a queda do Muro e, enfim, o final da Guerra. Mas neste seu voto de cinema conciliador – que, como “a criança” possa “ver e contar” – a sua filosofia benevolente parece-nos talvez (muito) mais credível do que em grande parte dos seus projectos posteriores (ainda que transpareça sempre alguma condescendência na sua caridade).

As façanhas estilísticas (discurso e imagem) do cineasta são aqui transportadas pelo belíssimo trabalho fotográfico de Henri Alekan (que empresta o nome ao circo de Marion, numa homenagem mais do que devida de Wenders). As imagens associam-se para belo efeito, às composições musicais de Jürgen Knieper, que junto com as ocasionais faixas post-punk de outros artistas, como Nick Cave, constroem aquela imagem quase onírica, outonal, de Berlim – um dos valores maiores do filme. Se para todos os efeitos se trata de um filme sobre “cinema” – sobre a projeção de cada um nas imagens, na memória de um lugar, e a narrativa solta que poderemos construir a partir das mesmas –, um filme que flui livremente entre os seus diferentes focos de afeição, Himmel será também um importante documento daquela cidade, naquele ano. De referir, nomeadamente, as sequências na biblioteca de Scharoun: o edificio aberto, em camadas, e os sons e silêncios dos seus leitores, sob o olhar protector dos anjos – seguramente o melhor que Wenders alguma vez terá feito.

 

Dedicated to all the former angels, but especially to Yasujiro, François and Andrej, indica-nos o intertítulo que fecha do filme. A associação dos três é algo incómoda, digamos. Mas será também, para o melhor e para o pior, a síntese mais adequada do cinema de Wenders. Um cinema que almeja aquela “simplicidade”, o encantamento no quotidiano de Ozu (cujo cinema, despido – “punk” nas palavras de Costa – Wenders jamais parece ter compreendido, apesar da evidente veneração); combinado com o olhar bondoso sobre o mundo, muito apaixonado pelas suas pessoas, de Truffaut; e o volume filosófico e virtuosismo formal de Tarkovski. E se Der Himmel über Berlin parece recorrer sistematicamente aos seus três anjos cinematográficos para a construção do seu discurso, afinal, muito próprio – será inevitavelmente pelo seu “Céu” (aquela misteriosa e infinita cidade de Berlim, by the wall) que o recordaremos.

 

Miguel Allen