Dossier Wim Wenders, Vol II – Tokyo-Ga (1985)

Carla RodriguesJulho 23, 2024

“Tokyo-ga”, de 1985, mostra-nos que um realizador também pode ser fanboy. Através desta longa-metragem – que acaba por não ser bem um mero filme nem um documentário no seu estado mais puro – Wim Wenders leva-nos numa viagem contemplativa e melancólica a uma Tóquio filmada incansavelmente pelo lendário Yasujirō Ozu, o seu realizador favorito. Esta admiração profunda foi a semente para a criação de “Tokyo-ga”, filmado por um Wenders deslumbrado pela maneira como o realizador japonês retratou a vida quotidiana e aparentemente corriqueira dos habitantes de Tóquio. Wenders viaja e filma Tóquio com um forte desejo de encontrar vestígios do mundo de Ozu e de compreender a essência da cidade que tão visceralmente moldou a sua obra.

 

O filme é composto por um conjunto de reflexões sobre o legado de Ozu. A sua abordagem minimalista, o seu foco na vida comum de pessoas comuns e as suas técnicas subtis mas poderosas de contar histórias ressoam em “Tokyo-ga”, que ocasionalmente alterna as imagens de Wenders com imagens de filmes de Ozu (como o incontornável “Tokyo story”), trazendo uma certa sobreposição de olhares e de tempos que nos vai revelando a verdadeira procura de Wenders. As secções mais pessoais e introspectivas do filme são entrecortadas com pequenas, mas reveladoras entrevistas com os colaboradores de Ozu, incluindo o seu diretor de fotografia habitual, Yuharu Atsuta, e o ator Chishū Ryū, através das quais Wenders explora a minuciosa arte e os fundamentos filosóficos dos filmes de Ozu.

 

Esta mistura de introspecção com realismo documental é o que torna “Tokyo-Ga” um animal cinematográfico especialmente interessante. Com uma abordagem contemplativa, Wenders ora se dedica a matutar sobre a obra de Ozu, ora permite que a câmara – descomprometida, relaxada, livre de artifícios – se detenha nos detalhes ao mesmo tempo mundanos e fascinantes da paisagem urbana de Tóquio. Há uma leve inspiração antropológica, na forma como Wenders quer captar aquilo que torna a cultura japonesa única em relação ao resto do mundo. Luzes de néon, comboios apinhados, criadores de modelos de comida feita de cera, e salões de pachinko são filmados com um sentido de admiração e curiosidade.

 Todos estes elementos, por mais desconexos que possam parecer, oferecem o backdrop perfeito para as reflexões filosóficas, emocionais e introspetivas de Wenders. Enquanto percorre a movimentada metrópole de Tóquio, há uma sensação palpável de procura, de estar à procura de algo que está fora do alcance. Este estado de espírito é encapsulado nas cenas em que Wenders visita locais retratados nos filmes de Ozu, apenas para os encontrar transformados ou perdidos no tempo. Cria-se um diálogo entre o passado e o presente, uma tensão entre tradição e progresso. Há uma forte perceção inicial de que a Tóquio da época de Ozu se desvaneceu, tendo dado lugar a uma paisagem urbana moderna e frenética. No entanto, no meio desta melancolia, há também um sentido de ligação e continuidade. “Tokyo-ga” mostra-nos, afinal, que o espírito dos filmes de Ozu perdura não apenas nos espaços físicos de Tóquio, mas nas pessoas que recordam e veneram o seu trabalho. Fintamos, assim, a sensação de perda inicialmente instalada, apercebendo-nos do que Wenders acaba por descobrir: embora o mundo mude, o cerne da experiência humana permanece constante. Tal como o seu ídolo Ozu, a capacidade de Wenders de encontrar estas verdades universais em experiências específicas é uma das maiores chaves da sua habilidade como cineasta e contador de histórias.

 

Na sua essência, “Tokyo-ga” é uma meditação sobre a passagem do tempo e a capacidade duradoura da arte de captar a condição humana nas suas múltiplas vertentes. A exploração de Tóquio por Wenders torna-se uma metáfora da sua própria viagem pessoal e artística, uma busca de significado num mundo em constante mudança. A reverência de Wenders por Ozu não se resume aos seus filmes como produtos puramente cinematográficos, mas sobre o que eles representam: uma profunda empatia pela humanidade, um respeito pela simplicidade e complexidade da vida quotidiana e uma crença no poder do cinema para revelar o profundo no comum. “Tokyo-ga” é, portanto, um tributo não apenas a Ozu, mas à própria ideia do cinema como um espelho da nossa existência.

 

Carla Rodrigues