Dossier Wim Wenders, Vol I – Alice in The Cities

Polaroids. Coca-cola. Martini. Ice-Cream Shops. Chuck Berry. Neste agrupamento de cores, cheiros e sabores, algo soa demasiado a América. Através de uma delicada estética visual e sonora, Wim Wenders mostra-nos o percorrer de uma estrada, cujo toque mundano confere a Alice in The Cities não apenas o cunho de road movie, mas também o início da exploração deste género na sua obra. Neste filme, a ilustração do género, muito mais americano do que europeu, é sempre vincada pela deriva, pelo desencanto e pela solidão. À quarta longa-metragem do realizador, a espontaneidade da câmara evidencia alguma simplicidade e despreocupação, assumindo-se como um filme poético, material e terrestre, que cruza na mesma personagem a descrença mas também o aperfeiçoamento motivado e potencializado pelas vicissitudes e as imprevisibilidades da vida.

Philip Winter é um correspondente alemão enviado para os Estados Unidos para capturar a essência desta nação em fragmentos do tamanho de uma polaroid. Às imagens deviam somar-se as letras, coisa que nunca se concretiza. Algo bloqueado e desinspirado, o jornalista vagueia pela costa americana, deparando-se com uma acérrima multiplicidade de pessoas, feições, carros, cidades, comunidades, lugares, paisagens e arquitecturas. Neles procura evidenciar a heterogeneidade desta nação que parece ser constituída por diversos países ao invés de múltiplos Estados. No dia em que dá por terminada a sua reportagem fotográfica, Philip decide regressar à Alemanha e é no aeroporto que o acaso acontece. O jornalista conhece uma mulher misteriosa que, tal como ele, também pretende retornar à Alemanha, fazendo-se acompanhar da sua filha Alice, mas sobretudo da tristeza e do desgosto de um casamento falhado num American Dream inexistente. Não havendo vagas para o voo que pretendem, a necessidade cria uma amizade. Os três tornam-se companheiros de espera, porém, Lisa, a mãe de Alice, pede a Winter que retorne com a filha para casa, podendo esta permanecer nos Estados Unidos a resolver questões pouco evidentes.

No culminar do tão esperado e aguardado regresso à Europa, evidencia-se a cumplicidade entre Philip e Alice, que vai aumentando ao mesmo tempo que cresce a relutância pela ausência prolongada da mãe da criança e respectiva custódia da mesma. É então aqui que se inicia verdadeiramente uma viagem espiritual, concretizada em mais um percorrer de alcatrão e asfalto, onde Alice e Philip buscam não só a avó da jovem, mas também uma Alemanha algo fragmentada e dispersa, cujas cidades oferecem vagos sentimentos de pertença a Philip, mas poucos ou nenhuns focos de memória a Alice. Ao longo do caminho, a animosidade e incompreensão iniciais, motivadas pelo confronto de personalidades entre a insubmissa mas madura Alice e o jornalista inadaptado ao mundo dos adultos, dão início a esta viagem de introspeção filosófica que se faz recorrendo a uma narrativa pictórica, da qual retiramos constantemente sensações de melancolia e nostalgia.

Alice in The Cities é um filme de um filme. Deambulando por sítios e lugares, Wim Wenders cria um road movie que pretende capturar a realidade através de dois olhares: o humano e o da máquina. O uso da Polaroid no mundo americano desconhecido é extremo enquanto na familiaridade europeia, Philip retira proveito com o olhar, acalmando o uso da máquina. A alienação de Winter, sempre obscuro e misterioso, resvalam para o sublinhar do carisma frio do adulto em contraponto com a personalidade quente, afável e curiosa de Alice. Desta forma, um jovem Wenders utiliza o destino como ferramenta para escrever um argumento. Soma-lhe uma temática de relevante pertinência, a fotografia e o fotojornalismo, para reportar o fascínio que sente pelo desconhecido, este desconhecido em forma de Estados Unidos da América, a nação tão distante e tão cheia de tudos e de nadas. Ao longo da sua trajectória e do rumo que cada dia lhe confere, Philip é acompanhado pelas vozes da rádio e da televisão que reafirmam a tensão existente entre a Europa e a América, num digladiar sonoro constante entre as duas despensas, perdão, potências.

 

Rita Cadima de Oliveira