Segundos depois de Hathaway (Chris Hemsworth) matar o braço-direito do titulado blackhat com uma chave de parafusos, no meio do desfile no Lapangan Banteng, este pergunta-lhe: “What do you want me to do, grieve? (…) He’s not here anymore.”
Alguns dias antes, sob um céu seco malaio, Lien (Tang Wei) pergunta: “What’s here?”
As respostas: a actividade de uma empresa de óleo de palma, operações de minagem de lata, agricultura. O vale está vazio. No entanto, essas coisas estão “aqui”.
Este “aqui” revela-se uma questão imprescindível, de um relevo quase perturbador, para uma compreensão acertada do filme de Michael Mann: é um filme de uma qualidade formal chocante, e uma obra-prima de acção física, de operação de câmara e de marcação, aquilo que em inglês se chama blocking – a posição dos elementos em cena – e em Blackhat, a pura posição, a pura presença “bloqueada”, a que está “aqui”: não é um acaso nem uma contradição que um filme aparentemente sobre dados, informação, rede, se concentre tanto em questões físicas, muito brutais, palpáveis. Nick Hathaway diz-nos, sobre passar tempo na prisão: “You work out on your body and your mind”, e o tempo que vemos dele neste espaço é ocupado a ler ou a empurrar o peso do corpo. A matéria não é virtual. Quando Mann nos mostra o tráfico de dados, sublinha o que está fisicamente a acontecer – um compasso na electricidade de um processador, a entrada de um USB numa interface: estas coisas acontecem, estas coisas são reais, e existem, tal como existe o dinheiro, a influência entre pessoas ou entre nações, ou a presença de uma operação empresarial num ponto do espaço, por pouco que a consigamos ver. A afecção existe: a certo ponto, uma personagem da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos exclama para outra, do Departamento Federal de Investigação: “Não evoques o 11 de Setembro comigo”. Para obter partes do código usado num ataque que provocou uma explosão numa planta nuclear chinesa, é necessário que os protagonistas entrem fisicamente no interior do local, protegidos contra a radiação e com severos limites quanto ao tempo e à temperatura que podem atingir. Hathaway usa um machado para chegar até um disco rígido. As coisas são reais.
Tudo isto são acontecimentos de uma presença extraordinária no filme, e o deleite ao vermos Blackhat é o de assistirmos a uma obra meticulosa, hiper-trabalhada, com um cuidado inacreditável prestado a todos os elementos (a imagem e o som são extraordinários, mas atentemos também à continuidade, à direcção de arte, elementos que contaram com consultoria de profissionais de cibersegurança verdadeiros, a densidade provocada pela linguagem estrangeira que não é legendada).
É uma obra-prima de acção, de movimento, de “peso do real”. Jung escreve, na sua autobiografia, a propósito de um episódio de “presença” de consciência: «Deu-se um momento em que, de repente, tive a sensação avassaladora de ter acabado de sair de um nevoeiro espesso, com a consciência de que agora eu sou. (…) Antes, fazia-se em mim, mas agora eu queria. Havia “autoridade” em mim.»
Cada personagem neste filme mostra ter “autoridade”. De cima a baixo, desde os quadros governamentais aos mercenários, um sistema operativo. É um filme de agentes de acção, onde as coisas “acontecem por causa de”. Não é simples definir em palavras curtas a aura que Mann consegue instalar, com belíssimo contributo musical de Atticus Ross e outros, explicando-se da forma mais descomplexa como o resultado de um filme que se leva exactamente a sério, impossibilitado de se levar “mais” ou “menos” a sério, mas precisamente de acordo com a seriedade que deve ter, aquela proporcional ao real.
Chris Hemsworth, extraordinário neste papel, é, mas nenhuma personagem é menos do que ele, nenhuma personagem tem menos peso no mundo: tudo é concreto, tudo tem uma ascendência e descendência. Num dado momento, Hathaway encontra, entre as plantas de um jardim, um ponto onde “a rede” é “mais forte”.
Qual é o motivo do responsável pelos ataques cibernéticos neste filme? Incrivelmente, ele diz-nos apenas uma coisa em sentido de explicação, uma única coisa: “I’m a gamer. I hire people to do sub-symbolic stuff.” É uma linha extraordinária. Tenho voltado a pensar na sequência central do filme, uma raid por parte da força de cooperação internacional ao esconderijo do principal alvo, na baía de Shek O. Hathaway e Chen conversam no helicóptero sobre a vida a seguir à operação. Mann corre em sprint com a câmara atrás da equipa.
A casa do procurado, o homem que deixará depois de “estar aqui”, desemboca além de um alçapão, e de uma saída em caracol, numa zona de esgoto e pedra. A troca de tiros é intensa. A equipa de Nick conseguiu dar a volta pela vila e disparam por detrás de uns contentores de carga de outro lado do porto. Existem cidades, aeroportos, bolsas de valores. Pessoas estão a morrer e a matar, há telefonemas, palavras e acção.