A mitologia de Michael Mann é composta por diferentes personagens que, isoladas e independentes, não se conformam à moral social vigente ou ao ritmo da sociedade que integram. Na sua galeria de heróis, John Dillinger (Johnny Depp) é uma figura particularmente curiosa, ao respeitar uma rigorosa ética pessoal que, para além de desenquadrada com o mundo que o rodeia, se supõe também francamente desenquadrada com a moral seguida pelo público do filme. Dillinger nos anos 30 era visto como uma espécie de Robin dos Bosques moderno, mas o filme, apesar de relatar esse facto, pouco faz para o sustentar – íntegro e intransigente, Dillinger assalta, mata e diverte-se. É assim bastante curioso como Public Enemies (2009) consegue, por entre tanta, chamemos-lhe, imoralidade, conferir um estatuto limpo de herói ao ladrão, enquanto o polícia (Christian Bale) se veste aqui de vilão, ainda que nunca de forma particularmente negativa.
A ideia política que surge sustentada pelo gesto de Mann é importante. Aprofundando uma reflexão transversal a toda a sua obra, em Public Enemies, a ética do indivíduo – a sua individualidade e natureza – sobrepõe-se à ética social, e essa “afronta” será tanto um sinónimo de liberdade – o confronto como a única posição, o único acto possivel –, quanto de morte – ponto de fuga de toda a narrativa deste filme. Reencenando acontecimentos “reais”, o filme é relevante por, num mesmo momento, e bem ao estilo autoral de Mann, se tratar tanto de uma obra intrinsecamente material (de um ponto de vista formal) e factual (o filme biográfico) como definitivamente abstracta, ou metafísica.
O trabalho de Mann com o digital é aqui rico e profundo em textura e “realismo” (à falta de um termo menos ambíguo). Existe uma certa imediatidade palpável que transmite uma tensão muito particular, uma sensação de urgência (ou fatalismo ?) a todo o filme. O mundo “em chamas”, a morte certa e anunciada, dois corpos em fuga. A câmara manual, os enquadramentos quase casuais, e a geometria sobretudo volumétrica (ou tridimensional), nunca pictoral, das imagens, associada a um découpage apressado, fazem de Public Enemies um filme em aceleração vertiginosa. Para tal contribui a habitual abordagem narrativa muito concentrada de Mann, que evita grandes desvios menos necessários, numa trama particularmente densa.
O principal, e grave, problema do filme talvez seja, afinal, os seus reputados actores. Seria menos problemático se fossem francamente maus, o que nem é o caso. Mas tanto Johnny Depp como Marion Cotillard mostram uma entrega tão académica e “pertinente”, tão sincera, em perfomances sinceramente tão pouco interessantes (sobretudo a de Cotillard), que a sua presença em cena nunca deixa de ser incomodativa. Ele, uma figura completamente fora de tempo, sem nunca abandonar os seus tiques de Jack Sparrow (o Johnny Depp é o pior one-trick poney da história do cinema), ela francamente longe das actrizes que obessivamente pretende ecoar (Cotillard é como uma Sylvia Sidney, série C). Serão os vícios de ambos que fragilizarão finalmente um filme cuja forma propõe uma aproximação brutalmente frontal com o seu objecto. Um filme brusco e preciso, muito cheio mas amplo. Tangível e abstracto, cru – violento e romântico, um melodrama total. Um indivíduo em rota de colisão com um mundo.