Em 1999, no seguimento do seu filme mais emblemático (Heat), Michael Mann realizaria aquele que é, em muitos aspectos, o seu trabalho mais contido. Um thriller político-jornalístico de quase três horas, baseado originalmente num artigo de 1996 da Vanity Fair (“The Man Who Knew Too Much”), The Insider dramatiza a história verídica de Jeffrey Wigand, “whistleblower” que denunciou um escândalo de saúde pública ao centro da actividade das grandes tabaqueiras norte-americanas. Filme construído maioritariamente a partir de cenas com personagens ao telefone ou em reunião, em diversos estados de espírito, The Insider poderia mesmo ser, pela descrição, o filme mais aborrecido de sempre. Mas pela mão – ou melhor, pelo estilo – de Mann, o filme revela-se um exercício fascinante de expressionismo cinematográfico com fotografia proto-digital, bem como uma importante reflexão em torno de ética e responsabilidade do indivíduo na sociedade ocidental contemporânea.
Ordinary people under extraordinary pressure, Mike. What the hell did you expect, grace and consistency ?
Hezbollah, Big Tobacco, e Unabomber. Paranóia pré-milenar, The Insider é o retrato tenso e corajoso de um país (ou economia) liberal movido estritamente pelos interesses das “grandes empresas”. Contrariando o relativo sentimento de optimismo social vivido nos Estados Unidos durante o segundo mandato da presidência de Bill Clinton (que começava, por então, a se esvanecer, fruto de outros escândalos), o filme coloca uma família nuclear “normal” ao centro de circunstâncias tanto extraordinárias e devastadoras, quanto perfeitamente realistas. Seguindo os esforços de Lowell Bergman (Al Pacino), jornalista do programa televisivo “60 Minutes”, para revelar a história de Wigand (Russel Crowe), The Insider aproxima-se conceptualmente de thrillers políticos do cinema americano dos anos 70 (como All The President’s Men, de Pakula), relevando um clima de acentuada paranóia (próximo de obras de espionagem mais abstractas, como The Conversation, de Coppola) fundamentada, aqui, pelo próprio sistema sócio-político americano. The Insider retrata uma América onde não existe “verdade” – e portanto “liberdade” – para além do que é publicamente veiculado pelas ditas “grandes empresas” (neste caso, as tabaqueiras).
Um filme peculiarmente smoke-free, por pedido do verdadeiro Wigand, a importância das “verdades” de The Insider não será finalmente um ataque frontal à indústria do tabaco em si, uma vez que esta, ao centro do filme, não é moralmente central para o filme. Espelho de um pessimismo bem mais profundo e aprofundado, The Insider expõe, através de uma complexa rede narrativa, uma sociedade onde a integridade moral de cada indivíduo só se revela possível na medida em que a relativa ignorância de cada um quanto a um sistema, que efectivamente controla a sua liberdade e identidade, lhe permite viver, confortavelmente, segundo os princípios éticos que defende. Na verdade, se o “problemático” Wigand se encontra já socialmente excluido e adequadamente silenciado desde o começo do filme, será a partir de Bergman, a verdadeira personagem principal da trama, que poderemos entrever, enfim, o mecanismo institucional que ambos pressentem e que ambos assumem refutar, e que Mann aqui expõe, sem mostrar. Through the looking glass, a corrupção sistémica das instituições sobre as quais se sustenta um edifício social, o ocidental – The Insider anuncia a fuga final de Blackhat (2013), a outra grande derrota filmada por Mann. E se este filme abre com o plano subjectivo dos olhos vendados e confusos de Bergman, será a sua silhueta que veremos virar-nos as costas no concreto e complexo plano final.
Formas difusas e linhas precisas. Negros fortes, tons de azul, brancos, verdes e amarelos. Literal e abstracto, concreto e impreciso. The Insider é de uma plasticidade ímpar, e antecipa (surpreendentemente, hoje) as futuras experimentações digitais do realizador. Mann tenta chegar “demasiado perto” de uma certa verdade formal, e os planos do filme parecem, mesmo em contenção, se desdobrar em estilhaços de uma pluralidade apaixonante. Um filme intrinsecamente expressionista : pela forma, Mann eleva a narrativa à sua inerente complexidade e justa imprecisão.
You won. / Yeah… What did I win ?
Uma amarga vitória, ou uma derrota velada. Mann talvez nunca tenha filmado outros “heróis” tão banais e excepcionais (ou necessários) como Wigand ou Bergman. Mas poucas obras atingem a ambiguidade arrebatadora e, afinal, tão humana, dos olhares, sombras, e espaços deste filme.