Dossier Michael Mann, Vol. IX – Miami Vice

Não é só em termos meramente formais que é possível analisar aprofundadamente a obra de Michael Mann. Há todo um mundo para além da plasticidade das imagens, do expressionismo e da exploração singular das potencialidades do digital (que, importa salientar, têm o seu ápice justamente em Miami Vice), características que têm vindo a ser esmiuçadas nos anteriores fascículos do dossier que a Tribuna do Cinema dedica ao realizador norte-americano. Sem nos afastarmos da mise-en-scène, afinal é de cinema que estamos a falar, voltemos o foco para a efemeridade do romance, tomando como ponto de partida os personagens Sonny (Colin Farrell) e Isabella (Gong Li), provavelmente o par mais marcante da filmografia de Michael Mann.

Os filmes do cineasta norte-americano estabelecem uma vincada dialética entre a vida privada e a vida profissional dos seus protagonistas. É precisamente dessa justaposição que nasce uma parte significativa da riqueza do seu cinema. No entanto, as duas dimensões mencionadas (privada vs profissional) funcionam também de forma isolada, como pretendemos demonstrar. Tomando então como epicentro o melodrama entre Sonny e Isabella, é possível percecionar a forma engenhosa como Mann nos vai contando a sua história de amor através de imagens, como se de um filme mudo se tratasse. Não que o diálogo (e a banda sonora!) não assuma preponderância em determinadas cenas que iremos evocar, mas importa-nos fundamentalmente contemplar a encenação de Michael Mann, a forma como um close-up, um plano/contraplano, um plano detalhe ou um movimento de câmara nos transmitem um determinado sentimento.

Ao planificar o filme, procurando isolar os momentos significativos entre os dois personagens, chegámos a um total de 140 frames divididos por 17 cenas. Optámos posteriormente por nos debruçar sobre as imagens que maior peso dramático carregavam em si mesmas, fundamentais para o desenrolar do novelo narrativo. Por fim, ainda em jeito introdutório, apraz-nos ressalvar a genialidade do casting de Colin Farrel para o papel de Sonny. Não nos esqueçamos que nos encontramos no terreno do melodrama, longe de uma dada seriedade e gravidade com que muitas vezes se julga a atuação. E é difícil imaginar uma expressão mais melancólica e um olhar mais ternurento do que os do ator irlandês, permanentemente no limiar do paródico.

 

O Magnetismo do Olhar

Depois de algumas cenas iniciais onde os dados do enredo são lançados, as negociações entre os traficantes de droga e os polícias infiltrados intensificam-se. Apesar de já anteriormente terem contracenado, tendo sido possível vislumbrar subtis olhares cruzados ou um ligeiro baixar de olhos de Isabella, que intuía um suspeito embaraço, é na cena da limusine que a trama se adensa. Paralelamente aos diálogos e ao rumo das negociações, Mann apresenta-nos a tensão do olhar entre Sonny e Isabella. Planos e contraplanos do ponto de vista de cada um dos personagens vão-nos informando do crescente desejo que se inflama entre os dois. Quando Sonny e Rico se vão retirar da limusine, a câmara aproxima-se dos rostos dos protagonistas, isolando-os dos restantes personagens e intensificando o magnetismo. Depois de Sonny sair, o olhar de Isabella detém-se em Montoya antes de baixar comprometidamente. Posteriormente, já fora da limusine, o olhar de Sonny segue o de Isabella enquanto a mesma se afasta no veículo. Plano e contraplano que a cada corte se aproxima dos seus rostos.

 

Viagem de Iate

Da limusine para o iate, onde se desenrola uma das cenas mais icónicas de Miami Vice. Depois de aceitar o convite para beber um copo, Isabella e Sonny iniciam a sua viagem com destino a Havana, o paraíso idílico que os afastará do enleio criminal e identitário. O digital permite-nos seguir bem junto dos personagens. O gelo está quebrado e a tensão sexual vai crescendo progressivamente. As reduzidas dimensões da embarcação e os planos fechados e claustrofóbicos vão aproximando os protagonistas. A colocação da câmara de Mann nas duas laterais e na traseira da embarcação vão renovando o posicionamento de Isabella e Sonny em cada plano, contribuindo, através da montagem, para a desorientação espacial do espectador, imergindo-o no centro do flert.

 

Havana

– Do you dance?

– I dance.

Depois da “dança” no interior do iate os preliminares prolongam-se agora no bar em Havana. A câmara de Mann vai seguindo os protagonistas, flutuando sincronizada com os seus movimentos. A montagem vai  intercalando planos detalhe dos seus corpos com close-ups cada vez mais próximos dos seus rostos, conduzindo-nos pela inevitabilidade do desenlace. Já no hotel o modus operandi perpetua-se, planos detalhe e close-ups, que nos envolvem na sensualidade do desejo e atração entre os personagens, e nos permitem vislumbrar uma lágrima que antevê a inevitável efemeridade daquele romance.

 

Confronto Final

Após mais algumas cenas entre Sonny e Isabella, ainda em Havana e de volta ao “mundo real”, das quais se destaca um escaldante regresso à limusine, chega o momento de confrontação final e revelação da verdadeira identidade de Sonny. O foco permanece na intensidade dos olhares cruzados entre os dois, agora reforçada pelo risco inerente às circunstâncias. O momento de revelação é-nos dado através de um plano do ponto de vista de Isabella que observa o crachá do FBI que reluz no peito de Sonny. É impossível não sublinhar a textura digital das imagens noturnas desta cena em particular, que culmina com a fuga do casal num carro, em direção ao abismo.

 

Despedida

E por fim temos o fatídico momento da despedida. Novamente os close-ups dos rostos, juntos no mesmo plano, durante o diálogo de melancólica aceitação das circunstâncias, “too good to last”. E regressamos também aos planos detalhe, de mãos, braços e de um lacrimejante olhar. Somos posteriormente confrontados com a imagem da casa vazia, que augura a proximidade do fim. E o avassalador clímax chega finalmente, os últimos planos e contraplanos de Isabella e Sonny devastados. O derradeiro plano, de Isabella com o cabelo esvoaçante enquanto se afasta da costa numa embarcação, voltando uma última vez o seu olhar na direção de Sonny, permanece com o espectador por muito tempo.

Talvez Heat seja o filme mais celebrado da obra de Michael Mann, mas Miami Vice é sem dúvida o mais inventivo e onde a fórmula e preocupações do realizador atingem o seu zénite. A primorosa utilização do digital, a forma audaciosa  como abraça o melodrama, sem recear o ridículo e o exagero. Mann estabelece uma acentuada dialética entre o filme de ação e o melodrama, que funcionam isoladamente, mas que ganham todo um outro valor na força da sua justaposição. Mesmo que possa ser discutível considerar Miami Vice a obra-prima de Michael Mann, é inteiramente justo apontá-lo como um dos mais importantes filmes do século XXI.

Bruno Victorino