Dossier Michael Mann, Vol. IV – The Last of the Mohicans

“The Last of the Mohicans” guarda em si o início e o fim dos tempos. Podemos ver no filme vários elementos alusivos à morte e ao futuro, apesar de “adaptação” ser a melhor palavra para descrever todas as peripécias e reações das personagens. Há um perigo constante que as rodeia, obrigando à negociação. Aliás, todo o filme passa por aí, entre ingleses e franceses, entre os Huron e os franceses, entre os Moicanos e os ingleses, entre os colonos e a coroa, entre o raptado e o raptor, entre o invadido e o invasor. Face a esta cadeia de perseguições, a fronteira aparecerá sempre como resposta… “They headed out here because the frontier’s the only land available to poor people. Out here, they’re beholden to none. Not living by another’s leave” … por enquanto.

Existem várias versões cinematográficas de “The Last of the Mohicans”, livro escrito por James Fenimore Cooper no século XIX, sendo que as mais conhecidas são as de 1920 por Maurice Tourneur e Clarence Brown, de 1936 por George B. Seitz e a de 1992 por Michael Mann. Nenhuma delas se encaixa num género específico (aventura, romance, filme de época), têm antes uma visão distinta de conceber os perigos oferecidos pela narrativa.

Tourneur e Brown apostam num fabuloso delírio febril repleto de recortes românticos, sendo talvez o mais ousado dos três filmes. Já Seitz segue à linha a ideia da superioridade do civilizado face ao selvagem, pese embora o argumento tenha algumas ideias rapidamente abandonadas pelo filme: o romance inter-racial, o Homem enquanto espectador do Homem, ou a troca de identidades entre britânico e colono. Note-se que o argumentista Philip Dunne (o mesmo dos celebrados “How Green Was My Valley”, “The Ghost and Mrs Muir”, ou “Anne of the Indies”) detestou o que Seitz fez ao seu trabalho e não viveu para ver como Mann o recuperou. Sim, a última versão realizada por Michael Mann é inspirada quer no livro, quer no argumento de Dunne, e é dos três o mais ambicioso. Mann procura ir além do mito e recriar a América antes do seu nascimento.

O filme abre com três homens a correr. O mais velho é Chingachgook, pai dos outros dois, Uncas, um moicano como o pai, e Hawkeye, o filho branco adoptivo. Parecem fugir de algo, todavia estão à caça de um veado, sendo Hawkeye quem dá o tiro certeiro. Param e honram o animal, símbolo de poder para muitas tribos nativas do Norte da América. A sobrevivência assim o exige. Corta e vemo-los a conviver com uma família de colonos, num ambiente descontraído e feliz. Assim é a vida. Mann introduz o elo familiar como importante para a sua história, ainda antes de apresentar as outras personagens e os quadros que a irão compor.

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Depressa é interrompida a linha narrativa que apresenta a ideal comunidade da fronteira, à medida que surge a guerra entre franceses e ingleses, assim como as alianças destes com os nativos e os colonos. O propósito? A disputa de um forte, para o qual se encaminham um batalhão de ingleses acompanhados pelas duas filhas do coronel Munro, Cora e Alice, e um guia de nome Magua. Esta última figura será o vilão do filme e é a sua personagem mais completa, fingidor (Huron em vez de Moicano) e ardiloso age pelas suas convicções. Nenhuma lei ou ancestralidade rege Magua, nesse aspecto não encontra contraponto em nenhum dos heróis ou personagens do filme. A sua crueldade é uma forma de “adaptação”.  Respeitará alianças e os códigos quando tais servirem de convenientes atalhos aos seus fins.

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A guerra entre as potências coloniais é um espetáculo desinteressante. Nos seus aposentos, dá-se outro muito mais revelador o romance entre Hawkeye e Cora. Se Tourneur procurava a sublimação do desejo em grandes planos e na composição centrada na proximidade do seu par amoroso, Mann resolve-a com um mero: “What are you looking at, sir?” seguido de “I’m looking at you, miss” e um silêncio prolongado. Eficaz, mas algo repentino. Julgo que o elemento romântico não interessa tanto ao realizador americano uma vez que o outro par amoroso, Uncas e Alice, não chega a desabrochar, comprometendo em parte a cena final no precipício (excelente na versão de Tourneur). Portanto, a revelação do romance serve mais o desenrolar sequencial, nomeadamente as atitudes do inglês Duncan, do que propriamente os seus protagonistas.

Se a guerra e a tomada do forte resolvem-se com um acordo de cavalheiros europeus, a sede de vingança de Magua pelas ações passadas dos ingleses e Moicanos não é tão facilmente resolvida. Obstinado, Magua não hesitará perante a atrocidade, tal não o faz um selvagem como na versão de 1936, é antes um homem corrompido e consumido pelo tempo. “Magua’s village and lodges were burnt. Magua’s children were killed by the English. Magua’s wife believe he was dead…and became the wife of another”. “Became the wife of another”, a ressonância poética é tremenda.

A atitude de Magua é semelhante à de Ethan Edwards (John Wayne) em “The Searchers”, vingativa e com constante receio do porvir. O paralelo com a obra de Ford parece-me adequado por vários motivos. O regresso à casa que vimos no início totalmente destruída. A ênfase nos últimos da sua estirpe e a existência de um “falso” membro familiar: Hawkeye nos Moicanos e Marty nos Edwards. O massacre conduzido por Magua idêntico ao praticado pela cavalaria no final do filme de Ford. Contudo, não sei e apenas especulo se o próprio Ford não terá sido inspirado pelas versões anteriores de “The Last of the Mohicans”.

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Mann distancia-se de “The Searchers” na medida em que não procura desenhar uma odisseia. Todavia, entende a América por outra lente. Através de aqueles que, tendo sido consumidos pelo tempo, como os protagonistas fordianos (e existem muitos), entendem o fim como o princípio. Chingachgook vingou-se de Magua tal como Ethan de Scar, ficando reféns disso mesmo. Já Hawkeye é livre e será o último guardião da memória dos Moicanos, daí que o título se adeque a qualquer um dos três Moicanos que acompanhámos.

A cena final pauta-se pela solenidade espiritual devido aos acontecimentos do clímax. Acresce a isto, pelo menos no “original ending”, um sussurro premonitório: “And one day there will be no more frontier. And men like you will go too, like the Mohicans. And new people will come, work, struggle… But once, we were here.” O novo mundo ter-se-á de entender.

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Eduardo Magalhães