Night Shyamalan é um realizador de difícil apreensão. Para os cinéfilos que aprenderam a amar o cinema a partir dos realizadores americanos surgidos nos anos 1990, ele sempre foi a figura do autor completo, aquele cuja obra poderíamos acompanhar tal qual um cinéfilo dos anos 1950 ou 1960 se alimentava dos filmes de Hitchcock ou Rossellini, assistindo-os no calor de seus lançamentos ou em revisões. Todavia, sua obra é marcada por seus erros e acertos, desvios e reencontros, oscilações que foram capazes de promover uma adesão apressada condicionada pela grife do autorismo; adesões a filmes em que o que se sobressaía eram os seus cacoetes conceituais, seus gimmicks que dissimulavam a vacuidade dramática das narrativas.
Do percurso que vai de O sexto sentido (1999) até A vila (2004), Shyamalan compunha narrativas sobre indivíduos que tomam consciência sobre o que eles realmente são, tanto aquilo que lhe era desconhecido até então quanto o que eles recalcaram sob as camadas profundas do trauma. Nestes filmes, a mise-en-scène funcionava como um sismógrafo, ou um polígrafo, capaz de apreender as mínimas progressões do afloramento dessa autoconsciência — lembremos, por exemplo, em Corpo fechado (2000), de cena em que Dave Dunn (Bruce Willis) paulatinamente compreende os seus superpoderes ao erguer barras de ferro cada vez mais pesadas sob o olhar fascinado do filho.
É a partir de A dama na água (2006) que a filmografia Shyamalan envereda por caminhos mais tortuosos. O seu interesse na composição de uma dramaturgia coesa (ecos de algum classicismo) dava lugar ao adensamento de uma vontade por retórica. Toda a metalinguagem exercitada nesse filme, seu jogo de ficção dentro da ficção, já era um prenúncio do que desembocará no found-footage de A visita (2014), no jogo com as múltiplas personalidades do protagonista de Fragmentado (2016) e a pseudoradicalidade no trato com o tempo em Tempo (2021). Nessas obras, a sobriedade e a concisão de seus quatro primeiros trabalhos eram substituídas pela superfície de uma (falsa) inventividade da forma cinematográfica.
A exceção vem com Vidro (2019) e, agora, com Batem à porta (2023). Do primeiro, um filme de Super-Herói sem os vícios nefastos do gênero, os três super humanos (Dunn, Sr. Vidro e A Besta), ao serem encarcerados em um hospital psiquiátrico, passam a ser torturados para que abandonem a consciência que possuem sobre si mesmos. Shyamalan transfere o campo de batalha épico para a superfície do rosto de seus protagonistas. Sua câmera atua para captar a forma com que a palavra inimiga impactava — e era resistida e combatida – na alma de suas vítimas, concentrando-se na erupção de seus gestos, olhares e tremores. Shyamalan retornava à mise-en-scèane como um sismógrafo
Em Batem à porta, pode-se dizer que há um retorno mais frontal àquilo que Shyamalan construiu em seus primeiros filmes. Ainda que ele nunca tenha abandonado as narrativas concentradas em microcosmos, aqui há a mesma precisão e sobriedade no trato entre o que está dentro e uma ameaça que vem de fora. Durante toda a sua metragem, o seu novo filme parece um objeto fora do tempo presente, como se ele pudesse ter sido o passo seguinte que daria após a conclusão de A vila, o caminho coerente com o todo de sua obra até então se ele houvesse permanecido fiel à carpintaria da encenação.
Na trama, durante as férias em uma cabana remota, a jovem Wen (Kristen Cui) e seus pais Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge) são feitos de reféns por quatro estranhos armados, capitaneados pelo professor Leonard (Dave Bautista), e que exigem que a família faça uma escolha impensável para evitar o Apocalipse. Um membro da família precisará ser escolhido para ser sacrificado. Sem acesso ao mundo exterior, a família tenta desconstruir a irracionalidade da crença de seus sequestradores, ao passo que precisam lidar com a dúvida que surge sobre a possibilidade de eles estarem falando a verdade.
Shyamalan não faz um filme de sequestro como tantos outros. A construção de seus personagens afasta o maniqueísmo entre vilões e vítimas, entre a racionalidade e a crença supranatural. As vítimas estão diante de um grupo de pessoas que acreditam veementemente que estão destinadas a evitar o fim do mundo. São pessoas comuns que, à exceção de um, não possuem histórico de violência ou de desilusão. O que os uniu foi o fato de que todos compartilharam das mesmas visões clarividentes que anteviam a aniquilação total. A mesma revelação que os impeliu a assumirem uma responsabilidade maior que as suas próprias individualidades.
Os vilões não fustigam as suas vítimas com torturas físicas. Sua coerção se dá através de um dispositivo brilhante da narrativa: a cada recusa da família em sacrificar um dos seus, um dos sequestradores se entregar à própria morte pelas mãos de um dos companheiros, o que desencadeará pragas ao redor do mundo, verdadeiras tragédias em grande escala, mas que são apenas prenúncios daquilo que dizimará totalmente a humanidade. Os efeitos dessas pragas são acompanhados ao vivo através da tevê e a correspondência entre os sacrifícios dos sequestradores e os eventos trágicos é o que abala as estruturas lógicas de Andrew, Eric e Wen.
Todavia, a narrativa de Batem à porta caminha com muito equilíbrio sobre o fio que separa o que é real e o que é fantasia, o que é da ordem concreta do mundo e aquilo que pode ser fruto de um delírio coletivo. Todas as imagens de tragédias que passam na TV são postas em xeque por Andrew, aquele que permanece cético a maior parte do tempo: um terremoto já havia acontecido pouco antes do primeiro sacrifício; o desencadear global de uma pandemia viral já era um risco conhecido após os primeiros casos serem noticiados anteriormente. Tudo pode tanto ser o apocalipse quanto apenas o nosso cotidiano trágico que é massivamente divulgado pelas mídias. Qualquer um pode projetar sentido metafísico às coisas do mundo, agregar crenças maiores para justificar a própria inadequação e violência.
O que fascina em Batem à porta, e o que realmente coloca ao lado de Vidro como os melhores filmes que Shyamalan realizou nos últimos tempos, é que, para além de uma adesão frontal ao fantástico, o verdadeiro embate se dá na forma como a palavra impacta as mentes e os corações de suas personagens. O espaço reduzido daquela cabana, principalmente o espaço que há entre as vítimas amarradas ao chão e o olhar vigilante de seus sequestradores, este pequeno quadrante tornado palco de uma batalha bíblica, é o local onde a palavra se manifesta e se concretiza. Os sequestradores são como que arautos de uma verdade maior, detentores da palavra capaz de redimir a morte. As vítimas são aquelas que precisam recusá-la ou deixar que ela penetre além das barreiras da razão.
A câmera de Shyamalan, diante de atores completamente excelentes, capta com muita precisão a forma como aquele verbo é encarnado pela fragilidade humana, a palavra que a toma e a eleva a uma posição sublime, um sublime que é alcançado pela total abnegação e sacrifício. E todo o caminho pedregoso que o indivíduo atravessa ao lidar com a crença e suas dúvidas, tudo é exposto em suas mínimas ressonâncias na fisicalidade de seus corpos. Eis um filme que, no interior do gentrificado e cínico atual cinema americano, reencontra aquela característica comum aos clássicos e aos modernos: ao filmar um corpo pode-se acessar a alma.