Dossier M. Night Shyamalan, Vol. VII – Servant

M. Night Shyamalan estreou-se em televisão com a série americana Wayward Pines, em 2015, regressando em 2019 como produtor executivo em Servant. A produtora é a APPLE TV+ e os episódios são de curta duração tendo, cada um, cerca de 25 a 30 minutos. Actualmente estamos perante a 4ª e última temporada deste processo criativo com um argumento obrigatoriamente mais extenso e igualmente subjugado à crítica da audiência pela exigência de um argumento menos passivo e mais versátil, prevendo a possibilidade de futuras novas temporadas.

Olhando de uma forma mais abrangente Servant é claramente associada aos géneros do drama e do terror psicológico, tendo como argumentista Tony Basgallop. Toda a narrativa começa por ser estática, confinada a uma casa de alta burguesia na cidade de Filadélfia onde quase toda a narrativa se irá desenrolar. É dentro das paredes desta pequena mansão que iremos encontrar os elementos principais deste drama, o casal Dorothy (Lauren Ambrose) e Sean Turner (Toby Kebbell), em ruptura, desavindos e desesperados com a perda precoce do filho às 13 semanas de vida. Desde cedo o 13 aparece como elemento de superstição, prevendo a chegada de um elemento sobrenatural e perturbador à vida deste jovem casal.

É Leanne Grayson (Nell Tiger Free) esta força estranha que muito bem se entrega ao papel de babysitter/au pair de um boneco bebé reborn chamado Jericho, a quem Dorothy vai impor um luto nunca realizado. Aconselhada pela terapeuta a adoptar um “baby doll”, Dorothy torna-se incrivelmente apegada a este reborn e começa a tratá-lo de uma forma fanática, como se de uma criança real se tratasse. A angústia e a dor desta mulher traumatizada pela morte precoce do filho fazem-na refugiar-se no pesar e na incapacidade de aceitar a já não existência do mesmo. Dorothy assume assim neste boneco a identidade da criança já ida. É então no estanque brinquedo Jericho que Dorothy vai encontrar a única forma e meio de se retirar de um estado catatónico do qual, na verdade, nunca saiu.

Por outro lado, Sean vai lidando sozinho com a dor, sempre com mais discernimento e consciência do comportamento bizarro e inusitado da mulher, ao mesmo tempo que suspeita profundamente das intenções de Leanne, que aparenta ser uma jovem submissa e condescendente. Com efeito, é em todo este mistério que Servant vagueia, numa atmosfera claustrófobica e performances tensas e inquietantes. Na verdade, para cortar um pouco com todo este suspense e mistério, M Night Shyamalan introduz uma personagem caricata e bastante burlesca através de Rupert Grint no papel de Julian, irmão de Dorothy.

Desta forma, é Julian que traz à série as partes mais cómicas e jocosas, com uma interpretação bastante irónica e tensa. É ele o desequilíbrio temperamental do argumento, mas também o ponto unificador de uma família castigada pelo infortúnio e pela perda.

Dentro da tragicomédia da vida familiar, Leanne deveria trazer consigo uma corrente de bom senso e razoabilidade a este panorama familiar. Contudo, o comportamento da jovem só vai agregando elementos desestabilizadores e erráticos ao quotidiano dos Turner. A partir do momento em que Leanne anui ao boneco Jericho, o espectador é levado para a dimensão do surreal e do incongruente, até mesmo do kafkiano.

No que diz respeito à direcção e cinematografia, Shyamalan consegue criar todo um ambiente de psicose, trauma e mistério. Frames das ruas vazias, apenas iluminadas pelos candeeiros urbanos e tons laranja, sombras suspeitas, tudo é feito com toque de sugestão e intriga. O argumento é tenso, nunca esclarecedor, muito “stranger in my house”. Sendo um drama baseado em personagens e nos seus medos e mistérios pessoais, há aqui uma metáfora bastante acentuada mais concretamente através da própria profissão de Sean Turner. Como chef gastronómico, é quase sempre na cozinha que confecciona pratos exóticos e deveras criativos, com alguma crueldade gráfica implicada, sugerindo parecer fazer com a comida o que a perda está a fazer com eles, humanos.

Finalizando, todo o thriller e suspense que envolvem Servant, são, na verdade, o seu visual storytelling a par de um profundo dark humor, excepcionalmente acompanhado por um forte e competente trabalho sonoro. A luz e as sombras têm um significado, a culinária de Sean tem um propósito, a distância da câmara do objecto tem uma razão, assim como os inexplicáveis comportamentos de Dorothy e Leanne têm o futuro da narrativa. Cabe-nos a nós, espectadores, criar o entendimento pessoal daquilo que nos é oferecido. A fórmula é autêntica e distinta, mas a sua compreensão poderá ter diversos corredores.

Shyamalan acaba por se dispersar um pouco da narrativa interior e da casa onde a acção se desenrola nos episódios iniciais, para nas temporadas finais trazer as personagens para o mundo exterior, ainda assim sempre de uma forma profunda, enigmática, dramática e pouco convencional. As alterações de humor e espirituais de cada um influenciam a acção, assim como a nossa disposição para ver esta série até aos seus créditos finais.

Rita Cadima de Oliveira