Todos conhecemos a história de Shyamalan no cinema, o jovem realizador de 29 anos que em 1999 realizou o filme de culto conhecido entre nós por O Sexto Sentido. Shyamalan trouxe com ele um estilo seminal, soturno e minimalista, que deambulava através de travellings de câmara expressões de incerteza, insegurança, desconhecimento. The Sixth Sense foi um êxito, imortalizando a frase I see dead people, dita por um Haley Joel Osment de olhar aterrado a um Bruce Willis inexpressivo. Outro dos toques que se tornou paradigma foi o seu famoso plot twist, na sequência da frase dita anteriormente que nos escusaremos de explorar agora.
A partir daqui o público ansiou por mais mistérios Shyamalanescos. Seguiu-se o mistério super-herói de Unbreakable, que viria a virar cinematic universe Marveliano com Split e Glass de forma desconcertante. Depois o fascinante Signs, na opinião deste vosso escriba o apogeu da obra do realizador, que trouxe o enigma dos símbolos de “outro mundo” a um campo de milho de uma pequena família ainda em luto, seguindo-se A Vila com mais um plot twist icónico de Shyamalan. Apesar de A Vila ter sido um filme divisivo, o realizador conseguiu manter o estado de graça.
Foi a seguir a A Vila que começou a apelidada fase negra da carreira de Shyamalan. Lady In the Water foi um flop para espectadores e críticos. The Happening recuperou alguns números de bilheteira, mas foi considerado quase de forma unânime (há sempre quem seja do contra, como veremos adiante) um tiro ao lado. Finalmente The Last Airbender, o rock bottom de Shyamalan que levou fãs da série de animação que adapta ao cinema, mas foi tão mal recebido que muitos se recusam a acreditar que fosse mesmo um filme do outrora promissor realizador de O Sexto Sentido.
Chegamos então a After Earth. Enquanto que poucos espectadores casuais, ou mesmo fãs do realizador, ousaram aventurar-se a assistir ao seu filme anterior, After Earth prometia algo diferente. Tínhamos afinal de contas Will Smith, um actor de topo comercial e créditos firmados, a encabeçar o elenco. Tínhamos ainda a promessa da sinergia com o seu filho Jaden Smith, recuperando o potencial que havia sido vislumbrado 7 anos antes no drama The Pursuit of Happyness. O background também era prometedor na forma de um pai e filho que, num futuro distante, despenham a sua nave espacial num planeta Terra muito distinto do que conhecemos hoje. As reações fizeram-se ouvir: Jaden Smith é um péssimo actor, o argumento é patético, falta vida, foram algumas das críticas mais ouvidas. Infelizmente, devido ao recente trajecto do realizador, After Earth nunca teve hipóteses. As polémicas que já na altura rodeavam a vida pessoal de Will Smith também não ajudaram. Mas será After Earth realmente assim tão terrível?
Não. Apesar de não ser provavelmente de facto uma das melhores propostas de Shyamalan, After Earth está pejado de qualidades que encontram exactamente o mesmo realizador que já tínhamos conhecido em Sixth Sense. Tal como qualquer outro dos seus filmes anteriormente referidos, este é hermético, fechado em si mesmo e no universo que cria, universo esse que não se expande por opção. Em A Vila tínhamos, enfim, a vila. Em Signs uma família sentimentalmente isolada. Em Unbreakable o yin e yang entre herói e vilão. Poderíamos seguir por aí fora. Shyamalan raramente envolve muitas personagens na sua trama e After Earth não é excepção, focando-se totalmente na relação (hoje dir-se-ia tóxica) entre um pai ausente militarizado, homem de responsabilidades e poucos sentimentos, de foco inabalável, e o seu filho, frágil e emocional, que vive na pressão de um dia vir a seguir as pisadas do seu pai. Não é preciso ser um detective para detectar o ominoso paralelismo entre os próprios Will e Jaden Smith. Jaden, filho da super estrela de Hollywood, aparentava estar a ser “preparado” para se tornar num actor de topo desde tenra idade, dizem as más línguas empurrado pelos pais Will e Jada. Mas não nos foquemos nisso… O importante é analisar como este tipo de relação, curiosamente sempre no masculino, é tema tão inspirador para Shyamalan. Relembramos mais uma vez Signs, com um Mel Gibson viúvo a tentar reencontrar-se emocionalmente com os seus filhos. Temos também a relação paternal entre Haley Joel Osment e o seu psicólogo, a entreajuda e autodescoberta entre Bruce Willis e o seu filho em Unbreakable, entre outras. O sentimento entre Kitai e Cypher Raige em After Earth mais não é do que um revisitar de temas familiares que Shyamalan continuaria a explorar até hoje ao longo de quase toda a sua filmografia que continua prolífera.
O que se sente é que o realizador criou um pequeno Mundo para as suas personagens numa fascinante Terra futurista. E isso continua tão confortável como já havia sido nos seus “melhores” filmes. Com Shyamalan não procuramos um escapismo realista, mas sim algo conceptual, algo ilógico e misterioso, que desafie as nossas percepções, quer emocionais, quer imagéticas, e After Earth entrega tudo isso. A soturnidade e o underacting, tão característicos de toda a sua obra até então (apenas nos posteriores The Visit e Split o autor se libertou dessas amarras) estão mais que presentes. Will Smith entrega uma performance série B caricatural, como se pede, que denota o mesmo desconcerto e estranheza que Bruce Willis, Mel Gibson ou Joaquin Phoenix já haviam antes demonstrado. Afinal de contas Shyamalan, este nosso artista plástico, é precisamente o inventor de personagens low key por excelência, de interpretação subtil, controlada, de baixa rotação. Já Jaden Smith acaba por ser, incontornavelmente, o calcanhar de Aquiles de After Earth, com uma ou duas cenas de particular indigestão mesmo dentro da estranheza dos registos desejados por Shyamalan.
A imagem, essa, não engana. Em After Earth o realizador continua a assinar os seus travellings, as suas cores desvitalizadas, os seus contra campos focados em objectos ou reflexos, tudo como il faut, como um relógio suíço apenas atrapalhado pelo sentido de urgência da narrativa do filme que trouxe as inseguranças do artista plástico ao de cima. Curioso como a realização de Shyamalan, tão apelidada de aborrecida e desprovida de alma neste filme, acaba por ser, uma vez mais, o seu melhor apontamento em detrimento da cinética que After Earth também oferece, em doses francamente equilibradas. Quando se desprende das teias da família e da rigidez da imagem que lhe é característica, Shyamalan vai para o thriller, tão comercial como aqueles que o criticam aparentam desejar, com flashbacks a la 127 Hours e perseguições florestais que relembram Apocalypto. De resto, de entre metáforas para o aquecimento global e a cientologia, muita tinta (ou tecla) se poderia escrever sobre After Earth.
É fascinante a quantidade de divisão que Shyamalan conseguiu criar ao longo da sua carreira, com haters que o desprezam a defensores acérrimos. Se o realizador tem de facto maus filmes, aliás, péssimos filmes(!), ou obras-primas dependerá de cada espectador. Já o interesse e curiosidade ninguém pode acusar Shyamalan de não conseguir captar. O fruto proibido é sempre o mais apetecido.