Dossier M. Night Shyamalan, Vol. IX – Where Do The Children Play?

Quando em 2006 se soube, meio como curiosidade de produção, meio como gancho promocional, que Lady in the Water (A Senhora da Água, 2006), tinha sido baseado numa história-para-dormir que o próprio Shyamalan inventara para as filhas, as pequenas reacções variaram: pelo planeta Terra, um tipo particular de mães aumentou o seu entusiasmo pelo projecto; Pete Vonder Haar, da revista Film Threat, escreveu: «If Shyamalan is going to use his kids as a focus group for future projects, maybe he should start making movies for Nickelodeon already and stop wasting our time.» Todos nós, que vimos o filme com essa informação na semana de estreia nos cinemas, reflectimos de alguma maneira naquela circunstância a que alguns grupos de aconselhamento pré-natal se referem como “a aventura da parentalidade».

 

M.Night com Ishana Shyamalan no set de Lady in the Water – de @ishy_night no Instagram

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Com o filme orçamentado em setenta milhões de dólares, Shyamalan ofereceria às filhas a “imagem real” do seu conto. “Maturidade do homem: significa ter-se encontrado a seriedade que se tinha em criança, ao jogar” (Nietzsche). Outro pensamento poderia começar a emergir no espectador, pensamento que não arredaria da “consciência de obra” que se começou a adensar mais agora na era prolífica e milionária do realizador indiano do que nessa altura dos seus “trabalhos de Hércules” (Lady in the Water foi, no final deste seu primeiro período, capa da Cahiers). Eis que Shyamalan, ao que parece, se encontra preso num determinado tipo de situação-matriz, preso numa determinada coisa que lhe interessa e à qual não parece querer, ou parece não conseguir, escapar. Ao vermos Old (Perdidos no Tempo, 2021), e nos depararmos, por exemplo, com a resolução do problema da trama apresentada pelo jogo de palavras cruzadas de uma criança, podemos perguntar-nos, com toda a justeza: consegue este homem contar outra história? Como outros autores, M. Night parece correr o risco de se fossilizar em torno do seu assunto, agora com cinquenta anos de idade e dinheiro para financiar os filmes que quiser sem estar sujeito às grandes produtoras: libertar-se-ia desse encargo depois de The Last Airbender (O Último Airbender, 2010), um filme cuja produção o deixou com arrependimentos, fruto do duro e demorado processo de blockbuster que o sujeitou ao escrutínio e à exigência dos estúdios, da press, e de fãs ou não-fãs que ainda hoje deixam comentários nos seus perfis sobre o assunto. A recepção crítica: Shyamalan tem uma resposta curiosa quando confrontado com o tema, quase penitente. “Não sei o que dizer”, admite numa entrevista à Vulture em 2010. “Só consigo ver [o filme] desta maneira e não sei como pensar noutra linguagem. Acho que estas são exactamente as visões que tenho na cabeça, portanto não sei como as ajustar sem ser eu próprio”. “There has always been this inexorable pull to join the group. I did these movies, and I rightfully got crushed, because they rightfully said ‘You don’t believe in yourself’(…)”, confessa, sobre o empreendimento, em 2019.

Falávamos sobre o efeito da longevidade na consistência. Sejamos claros: Não acredito que haja um problema de fossilização com Shyamalan. Ainda há um universo em construção, agora mais focado e concreto do que alguma vez foi, fruto da liberdade de produção, fruto da experiência. Sobre os “funcionamentos” do autor, uma panóplia de críticos na Cahiers du Cinéma fizeram já diagnósticos supremamente interessantes, que vale a pena lembrar. Emmanuel Burdeau aponta: “O seu cinema é o cinema do X marcado no mapa”, e está, claro, correctíssimo. Exalta três qualidades – a sua ciência narrativa; “o retorno do pai heróico (Bruce, Mel) não é separado das tropes do género que o reinventa”, o seu classicismo, a sua mestria sobre a forma, cada vez mais evidente; a terceira – Burdeau diz-nos: “Shyamalan é matreiro (…). Olhem para ele com os seus filmes tão suaves e crípticos. Olhem para ele, ali, com os seus cameos e nas entrevistas. Que bizarra mistura entre seriedade e parvoíce” – e, quando por exemplo em Old as famílias de turistas são encaminhadas para a praia maligna por um Shyamalan sorrateiro e comprometido, é difícil não ficar incrédulo com a lata deste realizador. Estaremos aqui a brincar?

Jean-Philippe Tessé, ao abordar algumas cenas “cómicas” de Lady in the Water, confirma a sua aberração e conclui: “Shy é um burlesco, o que é uma categoria primitiva, que sonha em ser um fabulista cheio de humor (…)”. Bill Krohn vai muito mais longe, ao escrever sobre a cena da águia gigante que voa com a protagonista no final desse filme, e recentra-nos aqui naquilo que, essencial lembrar, é uma obra que em momento algum deixou de ser séria: “Ao atrever-se a especular no ecrã uma mensagem de salvação, a importância do seu corpo de trabalho só será revelada quando ele morrer ou for morto.” – sublinhado meu.

Tesson: “Do que são então os Sinais? Um primeiro passo para a sexualidade. Uma nova trindade em nome do pai, do filho e do extraterrestre onde a família se pode recompor e a função paterna regenerar-se”, pois, segundo o crítico, tal como em Spielberg, o universo de Shyamalan assenta em personagens sem real libido. A tese de Tesson é interessante, mas permito-me, a meu ver, precisar melhor: Em Shyamalan não ocorre uma assexualidade nem, de resto, existe como fim uma recuperação pulsional; há sim uma repriorização da libido em relação ao necessário (para uma perspectiva radicalmente diferente, veja-se por exemplo Deep End (1970) de Skolimowski, onde é a sexualidade que é necessária), e esse necessário tende a ser a educação da criança. Contraditório? Mas vejamos a ausência quase medicamentosa de libido que está presente nos protagonistas masculinos em O Sexto Sentido, em Unbreakable ou em Sinais. Em Unbreakable (2000), numa cena de abertura analisada noutro artigo deste dossier, uma espécie de flirt nos primeiros minutos envolve pouco mais do que a remoção de uma aliança no dedo quando uma mulher se senta no comboio, uma coisa quase atrapalhada, e quase, ou concretamente, mal-entendida. Isto ocorre, claro, antes do acidente ferroviário que inicia o filme, uma câmara de entrada irrelevante, pois o que é necessário ainda não se iniciou: Bruce Willis torna-se um super-herói, mas um super-herói com um filho que o questiona e que o quer enquadrar num modelo (mon père ce héros). Em O Sexto Sentido (1999), a segurança, o conforto psíquico e a manutenção de um mundo interior saudável para com a criança (verdadeiramente, pois estamos a falar de um mundo interior que, é explícito, “sangra” para o mundo real, através das visões fantasmagóricas) é a razão de ser de Willis, aqui, contra-vontade, pai adoptivo, face à ausência de uma figura que contrabalance a materna. Em Sinais (2002), a invasão mundial por parte dos alienígenas é relegada para segundo plano: é através da pequena filha de Mel Gibson que tudo é revelado, e é a sua fixação infantil em deixar copos de água espalhados pela casa que, ultrapassada “à força”, permite, além do seu desenvolvimento, a sobrevivência da família e do mundo.

Jean Bergeret, psicanalista: A integração da violência fundamental, que existe em todo o ser humano, deve ser baseada em impulsos de amor suficientemente fortes.
A falha neste enunciado dita os protagonistas de Glass (2019), onde o mundo se revelou incapaz de realizar uma integração saudável da “violência fundamental”, em cada um dos três homens. Em Knock at the Cabin (Batem à Porta, 2023), uma criança é explicitamente confrontada com estranhos que se suicidam à frente dela, para além da própria “violência do mundo” que chega através das suas profecias catastróficas, tendo apenas os pais, raptados a seu lado, para a ajudar a formular um modelo de compreensão e integração em relação ao que está a acontecer.
Ou olhemos para o curioso quadro de Old, thriller situado numa praia onde, por cada hora que passa, quem lá está envelhece vários anos, onde as crianças crescem na frente dos olhos dos pais – no fabuloso travelling ininterrupto que é o grande momento do filme, as duas crianças que engraçaram uma com a outra são agora adolescentes, e depois de estarem um ao lado do outro numa tenda, numa coisa completamente casta, a câmara vai para outro sítio, e quando volta a rapariga está grávida (o sexo e a própria concepção aconteceram não só à parte, fora de campo, como em “timelapse”). Com os vários adultos na praia turística a enrugar a olhos vistos, é em relação às crianças que temos urgência para resolver um futuro galopante.

E a preocupação é, em todos os casos, a parentalidade, uma parentalidade corroborada pelo “destino” (Sinais, Knock at the Cabin, Unbreakable) e que se formula através do confronto da unidade familiar com o inexplicável. Hoje, parece-me que é a pergunta de Cat Stevens que parece mais incomodar Shyamalan: os seus filmes são filmes de um futuro (um futuro permitido pela criança: The Last Airbender), filmes com a sua seriedade, com o seu suspense e o seu humor, mas com a sua preocupação concreta em relação ao lugar da família e da infância no mundo, acima de tudo filmes com a visão de um autor único, que está longe de dar por terminada a sua tese.

No set de Unbreakable

Rafael Fonseca