Dossier M. Night Shyamalan, Vol. III – Decompondo uma Viagem de Comboio

Imagens em movimento. Uma das descrições mais sucintas e acertadas da sétima arte. Roubando-lhes o movimento poderá perder-se metade da magia. No entanto, a captura estática do denominado frame, poderá permitir-nos analisar detalhadamente os segredos que estão por trás do movimento, congelando o seu efeito. E foi esse o exercício que se procurou fazer com a famosa sequência da viagem de comboio em Unbreakable (2000) – magistralmente retomada em Glass (2019) -, considerada por João Bénard da Costa como uma das melhores da história do cinema. Sim, leram bem, uma cena de um filme de M. Night Shyamalan. E o que tem a cena de tão especial? O absoluto controlo da mise-en-scène, como iremos constatar de seguida. Vamos dividir a análise em blocos, para melhor contemplar os efeitos da câmara de Shyamalan na introdução da personagem David Dunn (Bruce Willis).

Introdução de David Dunn

Através de travellings sucessivos para a direita e para a esquerda a câmara vai reenquadrando um taciturno David Dunn, no intervalo dos bancos do comboio, remetendo o protagonista ao espaço que vai restando do quadro. Plano e contraplano de David e de uma criança que segue no banco à sua frente, à qual atribuímos, a partir deste momento, o ponto de vista da câmara. A inocência e o ponto de vista da criança são temas recorrentes da obra de Shyamalan e, neste caso em concreto, irão contrastar com o desenlace narrativo que se segue.

flirt

Aliança. Tatuagem. Olhar. Aliança. Mulher. A câmara prossegue a sua dança por entre os bancos do comboio, detendo-se em detalhes que vão guiando o espectador e que reforçam a sensação de que poderíamos perfeitamente ter o som e as legendas desligados (mesmo considerando a brilhante montagem de som da cena, que caberia numa outra análise). Um regresso aos primórdios do cinema mudo e à arte de contar uma história através de imagens.

E chegámos ao momento do flirt propriamente dito entre David e a desconhecida que se senta a seu lado. O movimento da câmara continua, prolongando-se o take ininterrupto que vai isolando os personagens no quadro, em inusitados shot/reverse shot, proporcionados pelos bancos, que vão ocultando, à vez, cada um dos personagens, sem necessidade de recorrer à montagem para o efeito. No movimento entre um e outro a câmara capta instantes em que ambos partilham o quadro, sempre em momentos de maior aproximação física (revista e aperto de mãos).

A reprovação

Os avanços de David Dunn não encontraram reciprocidade, levando a mulher a abandonar o lugar que ocupava a seu lado, incomodada com o desenrolar do enredo. A aliança regressa ao dedo do protagonista que, de seguida, lança o olhar novamente em direção da criança (e da câmara?). Contraplano e temos a expressão da criança que, através do tal efeito Kuleshov, interpretamos (o espectador e David) como reprovador.

A iminência do desastre

A sequência já vai longa e a câmara foi-se mantendo sempre entre os bancos dos passageiros, pelo que o aparecimento de um plano que abandona esse local nos faz antever que algo está prestes a acontecer. O plano inicia colado à janela, mostrando-nos o exterior do comboio em progressiva aceleração provocada pelo aumento de velocidade da locomotiva. Seguidamente recua para o rosto de David Dunn, que olha para o exterior, continua a recuar acompanhando o olhar do protagonista na sua direção, roda 180 graus mostrando pela primeira vez os passageiros do lado contrário, também eles sobressaltados a olhar para o exterior. De seguida a câmara regressa ao espaço entre bancos para nos mostrar a expressão de Willis. Um zoom na sua direção acentua a iminência do desastre, contraplano de um passageiro do banco da frente a segurar firmemente o apoio de braço. Voltamos a sair do entre bancos para um close-up de David de perfil que, em slow motion, volta o olhar para a câmara, ficando o fundo num branco luminoso e corte para a cena seguinte, uma elipse que nos priva da contemplação do acidente.

De volta ao Eastrail 177 em Glass

Passados 19 anos e com a trilogia a chegar ao fim, regressamos ao interior do Eastrail 177. Através do tradicional plot twist Shyamalan coloca o pai de Kevin Crumb (James McAvoy) na mesma hora e local do acidente de comboio que teve em David Dunn o único sobrevivente. Agora em digital, a abordagem do cineasta mantém-se, transmitindo-nos, economicamente, muita informação em poucos planos. A câmara mostra-nos inicialmente o ponto de vista do pai de Kevin, que olha através da janela no interior do comboio para Kevin (ainda uma criança) e a mãe que se despedem na estação. Assim que o comboio começa a avançar, Kevin, premonitoriamente, continua a acenar acompanhando a carruagem visivelmente perturbado. Corte. Estamos agora junto ao pai que se despede em pé e aparenta alguma surpresa pela reação de Kevin. Senta-se e a câmara detém-se na sua mala inscrita com o sobrenome Crumb. Voltamos a subir para as suas mãos que seguram um panfleto sobre tratamento e terapia para a DID (Dissociative Identity Disorder) e continuamos a subir até chegar ao seu rosto.

Fusão Glass – Unbreakable

E chegamos finalmente ao truque de ilusionismo de Shyamalan, onde o digital se funde com a película 35mm e Glass se funde com Unbreakable. A câmara abandona o pai de Kevin e, enquanto recua pelo corredor central do comboio, apercebemo-nos da chegada desfocada da mulher desconhecida vestida com uma blusa azul que reconhecemos de Unbreakable. Assim que chega ao seu destino, a câmara deixa de recuar, iniciando um travelling para a direita. Em determinada altura o plano fica extremamente escuro, toldado por um banco que ocupa a totalidade do quadro. É este o momento aproveitado pelo realizador para colar os dois filmes, e, quando saímos do breu, estamos subitamente em Unbreakable, no plano em que David coça o seu olho mostrando-nos a aliança.

Mais do que as conexões e importância narrativa que esta sequência tem para a trilogia Eastrail 177, importa sublinhar a mestria com que M. Night Shyamalan vai “escrevendo” com a câmara (caméra-stylo), contando-nos a sua história através de imagens em constante movimento, onde a sua idiossincrática forma se funde sem qualquer esforço com o conteúdo, naquele que é, porventura, o ápice da sua filmografia.

Por fim, para melhor contemplação da mise-en-scène de M. Night Shyamalan, devolvemos o movimento às imagens, deixando-vos uma montagem da sequência do comboio que liga Unbreakable, Split e Glass.

Bruno Victorino