Dossier M. Night Shyamalan, Vol. II – Eastrail 177, “Limited Edition”

Miguel AllenFevereiro 3, 2023

Na irregular filmografia de M. Night Shyamalan, uma “narrativa” parece formar um possível, ainda que difícil, centro – a chamada “trilogia Eastrail 177.” Os filmes que a compõem surgiram em momentos muito distintos da carreira de Shyamalan. Unbreakable, de 2000, foi lançado no seguimento do grande sucesso de The Sixth Sense, e, precendedo Signs e The Village, foi visto na altura como o filme “menor” dum realizador jovem com um talento surpreendente. Largos anos mais tarde, Split (2016) e Glass (2019) foram realizados numa fase de “reconstrução” de Shyamalan, cuja carreira ficara inevitavelmente marcada por uma boa dezena de anos de fracassos comerciais e de crítica (de Lady In The Water a After Earth). Impulsionado pelo surpreendente, ainda que modesto, sucesso de The Visit, Shyamalan retornaria então a personagens que imaginara anos antes, dando seguimento à história de David Dunn e Elijah Price, cujo filme inaugural se tornara entretanto objecto de culto.

Consideravelmente distintos tanto a nível formal como em tom, os três filmes apresentam uma síntese (imperfeita) da obra completa de Shyamalan : os temas que lhe são queridos, as suas preferências formais, e os estilos ou géneros que trabalha, com maior ou menor sucesso, e com maior ou menor humor, claro. A trilogia propõe também uma rara e importante resposta de “autor” a um género que parece hoje esmagar, ou pelo menos poluir, a generalidade do cinema comercial americano : o cinema “fantástico”, dito fantasy na sua vertente mais formulaica e banalizada dos últimos anos.

 

  1. The Overseer 2000

– I had a bad dream.

– It’s over now.

 

Unbreakable é o anti-“superhero movie” (no sentido que anos de mutilação cinematográfica massificada deram a esse “sub-género”) e, talvez por isso, seja o único filme de super-heróis que valha mesmo a pena ver. Num filme que trata da importância cultural que os comics assumem na sociedade americana, Shyamalan parece encontrar nessas histórias uma mitologia original (porque relativa à origem), o mito fundador da identidade dos Estados Unidos enquanto país.

Determinadamente ancorado num realismo “terreno”, Unbreakable é um filme de pessoas comuns confrontadas com um evento singular – tema, de herança de Spielberg, que atravessa toda a obra de Shyamalan -, um filme de situações extraordinárias no mais banal dos quadros, ou simplesmente um filme sobre uma família em crise, que se reencontra face à adversidade. Num passo vagaroso, pesado, Unbreakable encontra um equilíbrio justo e particularmente difícil entre um mundo dito « real » e esse mundo fantástico dos ensembles de licra coloridos. Ao centro, Bruce Willis surge quase tão atónito quanto o próprio espectador para com os seus “poderes”, e a icónica parca verde que o cobre confere-lhe uma aura quase mística, mas sempre concreta e palpável, jamais lantejolada.

Apesar duma conclusão tão cruel (e sem falar da cena de abertura, absolutamente desarmante, com o nascimento de Elijah Price), Unbreakable é um filme sobre crença, um filme sobre transcender os limites que nos são impostos pela sociedade em nosso torno. Filmado com uma precisão impar, duma simplicidade rigorosa, o filme consegue manter uma forte credibilidade mesmo quando a história se torna perfeitamente “fantástica”. A monumentalidade comovente da ascensão final de Willis, quando tudo no filme poderia virar para a paródia, é seguramente um dos maiores feitos do cinema americano recente. O Super-Homem enquanto homem e, mesmo se definitivamente “super”, um homem entre os outros. Um filme de epifanias enquadradas por taças de cereais e sumo de laranja Tropicana, antes da saída para a escola.

 

  1. The Horde 2016

– The broken are the more evolved. Rejoice !

 

Saído 16 anos mais tarde, Split é um filme bem diferente (e francamente menos marcante) do que Unbreakable, do qual não é uma sequela, mas antes uma história paralela. Contrariamente à solidez “inquebrável” do primeiro filme, Split é um filme de fragmentos, conduzido por um James McAvoy (Kevin Wendell Crumb vezes 20) em constante explosão. Num registo próximo do horror, um thriller de suspense onde Shyamalan nos conduz de forma cativante, como sempre, mas que, apesar das suas surpresas, é um objecto consideravelmente mais previsível, e notoriamente o capítulo mais fraco da trilogia.

Split é um curioso filme de câmara, um bizarro “romance” de clausura a dois níveis, que se sobrepõem, física e psicológica. Num filme que explora a decadência mental infligida pelo trauma, os fantasmas que carregam a alma dos dois protagonistas (Kevin e a sua presa, Casey) são espelhados formalmente pelo terror dos espaços fechados do filme e por um corpo turbulento em foco, num permanente conflito. Sempre ao centro da cena, James McAvoy interpreta uma espécie de Norman Bates elevado ao infinito : uma personagem múltipla, que tanto é o valor principal do filme, como o seu elemento mais problemático. Tentando “encher” o espaço conscrito do quadro, McAvoy absorve tudo o que o rodeia, num overacting de extremos. Cinematograficamente, após a estranheza dos momentos iniciais, Split despe-se progressivamente do seu mistério e alimenta-se sobretudo de (simples) choques. Mas mesmo assim, um exercício de estilo, que, apesar dos seus faux pas (as cenas da infância de Casey / Anya Taylor Joy), é envolvente e emotivo. Não acrescentando muito à história global da trilogia, permite a introdução de temas que constituem o fundo largo de Glass.

 

  1. Mr. Glass 2019

– I’m not a mistake, it all makes sense ! (Unbreakable)

 

Glass fecha a trilogia ao oferecer, primeiramente, uma verdadeira sequela a Unbreakable, e orientar-se enfim sobre o “realizador” dos eventos do primeiro filme (e, saberemos enfim, também dos eventos de Split) – o maquiavélico sobre-humano Mr. Glass (Elijah Price) / Samuel L. Jackson, possível reflexo de Shyamalan na narrativa.

O filme mais profundamente conceptual da trilogia, Glass é, com Old, talvez a obra mais metafísica da filmografia Shyamalan. Praticamente um ensaio sobre o cinema do realizador, Glass é tanto um cativante jogo com todas as peças dos dois filmes precedentes, como uma longa reflexão sobre o confronto entre realidade e representação – na representação que é a realidade no cinema. Como Unbreakable, um filme assente sobre crenças – em que acreditamos quando a sociedade nos força o contrário daquilo que sabemos ser verdade ? Como Split (e de certa forma por causa de Split), um filme em estilhaços, com as suas figuras (ou personagens, ou actores) em profusa multiplicação – o “plot twist” como recurso constante na construção das diferentes identidades. Curiosa conclusão duma curiosa trilogia, Glass retoma os temas de Unbreakable a partir duma base preparada por Split, dois filmes que, sem este terceiro, pouco dizem um ao outro.

Através da clausura dos três “fantásticos”, Glass propõe um diálogo frontal (a famosa cena da entrevista na sala cor de rosa) de cada figura (ou personagem, ou actor) com a “moral” à qual dá forma. Filmando o conflituoso grupo de “heróis” em permanente confronto interno (estes “avengers” de Shyamalan estão bem longe das querelas infantis dos filmes da Marvel), Glass aborda longamente o problemático heroísmo de cada um destes sobre-humanos (leia-se dum qualquer sobre-humano) : os crimes graves de Price (onde os fins justificam os meios), o moralismo individualista e subjectivo de Dunn, a evidente insanidade mental de Kevin, e, enfim, todas as acções da “bem intencionada” Dr. Ellie Staple, nova arqui-inimiga da banda e praticamente o reverso de Mr. Glass, cujas vitórias são integralmente obras de mentira e controlo de liberdade.

Os super-heróis de Glass não são figuras imperiosas que protegem os fracos. Numa sociedade que se constrói duma constante supressão da diferença, que procura eliminar qualquer desvio à “norma”, a anomalia é aqui o verdadeiro acto heróico. O combate final e o consequente desfecho da trama, na estação de comboios, formam um discurso pela liberdade do indivíduo, pela verdade (necessariamente controversa) enfim exposta aos olhos de todos. Filme hitchcockiano, Shyamalan evoca em Glass um forte cepticismo para com as figuras de autoridade que orientam a sociedade (cepticismo esse que contradirá em Old). Mas, em conclusão aos dois volumes anteriores, num quadro construído de injustiça e mentira, o espírito humano (identificado sobretudo em Mr. Glass, o mastermind e peculiar herói desta trama) mostrar-se-á forte, mais astuto do que qualquer adversidade, sempre apesar das sucessivas derrotas que Shyamalan filma. E claro, em resposta sentida ao já referido primeiro plano de Unbreakable :

– I wasn’t a mistake, mama.

– No. You were spectacular.

Corpos brutais de pessoas frágeis. A “trilogia Eastrail 177” é uma origin story (nas palavras de Mr. Glass) plural sobre a diferença, sobre encontrar um lugar nosso no grande mundo. Uma fantasia espectacular e épica dentro do banal (Lady In the Water). Um olhar em direção ao céu para compreender as questões mais profundamente terrenas (Signs, After Earth). O humano pelo sonho e pelo divino.

Miguel Allen