Dossier M. Night Shyamalan, Vol. I – Expressionismo à Hollywood

Adaptações de séries para o cinema não costumam ser fáceis. Parte disto terá também que ver com a própria estrutura narrativa de ambos: enquanto a televisão privilegia histórias expansivas, cujo impacto se revela apenas com o acumular de elementos ou com a sua gradual mutação (lembre-se o conselho tantas vezes badalado de “depois do X episódio é que fica bom”), o cinema, por seu lado, embora possa ter um enfoque exclusivamente narrativo, permite e incentiva que se vá para lá disso, dado que a duração mais curta, mas, simultaneamente, sempre contínua, favorece a explanação de um raciocínio, uma ideia, através de uma mais cuidada economia informativa. Adicionalmente, as séries, sobretudo as animadas – embora podendo generalizar-se-, pois são mais frequentemente adaptadas ao grande ecrã, mais do que outros materiais originais como livros – porque ninguém lê, claro está -, contam, aquando da estreia do respectivo filme, já com uma base de fãs que trará exigências e expectativas próprias para a história que conhecem.

Avatar: The Last Airbender é a série de animação que serve de inspiração para o filme de M. Night Shyamalan de 2010, The Last Airbender (o “Avatar” poderá ter sido abandonado para evitar confusões com o filme de James Cameron, estreado no ano anterior). Dizer que este é um dos seus filmes menos aclamados seria eufemístico. À época, recebeu 5 “Razzies”, o grande vencedor do ano, e, ainda hoje, uma passagem pelos sítios da Internet Rotten Tomatoes, IMDb e Metacritic (o Triângulo das Bermudas do cinema, onde o pensamento crítico desaparece sem deixar rasto) dá conta da percepção com ainda alguns adeptos de que estamos perante um dos piores filmes do ano. Se é certo que muito distinguirá ambas as obras, e que o filme de Shyamalan não terá falta de defeitos, a tentativa de tradução de Avatar para o cinema que foi aqui engendrada não é sem interesse e por isso merece uma apreciação mais profunda.

Uma das características que imediatamente trouxe atenção ao desenho animado foi a sua inspiração na cultura asiática: se a história muito ia beber à cultura chinesa, desde logo na maior parte dos nomes das personagens, o estilo de animação pautava-se pela sua semelhança à animação japonesa, afastando-se dos estilos mais tipicamente ocidentais. Similarmente, The Last Airbender reproduz alguns modelos do cinema de acção asiático, desde a presença de artes marciais à utilização de efeitos especiais – descomplexada, expressionista ao invés de realista, que não sendo exclusiva do cinema asiático (veja-se, para lá de muitos dos filmes de super-heróis que têm vindo a surgir nos últimos anos, o também mal amado Pompeii (2014), de Paul W.S. Anderson), nele encontrou lugar de honra, já desde as últimas décadas do século passado.

A reformulação da história, já essa, sofreu um completo câmbio de princípios. Mesmo para quem não está familiarizado com o material original, é claro para o espectador o esforço de truncamento: embora incida somente na primeira parte da série, a história de Aang adquire uma natureza praticamente episódica, as transições são reduzidas ao mínimo e as restantes informações necessárias à sua compreensão são telegrafadas da forma mais conveniente – à falta de melhor, a dada altura a narração em off pura e simplesmente nos informa de que uma relação entre duas personagens, uma das quais acabara de ser introduzida, se desenvolveu. Ainda assim, duas ideias vão percorrendo o filme. A primeira terá que ver com emoções: coragem, medo, raiva, amor, luto, que as personagens vão aprendendo a expressar ou ultrapassar. Por isso se lamenta que as histórias e a caracterização das personagens fique tão esboçada que não deixa espaço para que emoções profundas floresçam, por muito que alguns momentos o pudessem prometer: veja-se as memórias de Aang do tempo com os monges durante o clímax na recta final do filme. A segunda prende-se com uma percepção quase transcendente da Natureza, responsável não só pelo equilíbrio do mundo, mas pela libertação do potencial do indivíduo, uma vez que este esteja em sintonia com ela.

Retomando o tema anterior, torna-se interessante constatar como um filme tão assumidamente artificial procura tratar a Natureza. De imediato na primeira cena vemos duas figuras numa enorme paisagem branca, um glaciar que mal consegue disfarçar ter sido inserido digitalmente na imagem. Um contraste que se mantém a cada cena em que alguém manipula os elementos, cada vez que Aang visita o mundo dos espíritos, no agitado trabalho da câmara que constantemente chama a atenção a si e na fantástica sequência onde o desequilíbrio da Natureza torna a Lua encarnada, soltando um revérbero que tinge todo o céu. E destes elementos começamos a pensar se não é nesta artificialidade que Shyamalan encontra um outro estado natural, a expressão puramente visual. Um pensamento que atinge o seu apogeu no já referido clímax do filme a que o espírito do dragão dá o mote: “Mostralhes o poder da água.” – Mostra-lhes. A cena em que Aang liberta as suas emoções é construída com o maior dos artifícios, onde a tecnologia e a arte disponíveis dão vida a uma gigantesca parede de água, onda que não rebenta, mas cuja visão somente faz as tropas inimigas recuar. A nós, o espetáculo de formas e luz faz-nos recuar as defesas e questionar se o artifício é bastante.

Diogo Vale