Dossier M. Night Shyamalan, Vol V – O Visível e Invisível como um Todo em “A Vila”

“A Vila” é um filme feito de detalhes sobre o que é invisível Vs o que é visível. Os primeiros minutos do filme mostram-nos vários animais que são mortos por algo desconhecido. O espectador vê apenas as suas carcaças, nunca a morte em si, a acção ou o culpado. Este jogo invisível dura, no entanto, pouco tempo, pois é-nos revelado proximamente que existem uns seres que habitam a floresta, têm longas garras, grande porte e ameaçam os locais há muitos anos. Há quem nunca os tenha visto, mas muitos sabem como eles são.

A forma como o medo é introduzido no filme é diferente do que o terror costuma fazer. Em vez de se criar um enorme vazio de suspense com potenciais culpados, “A Vila” salta imediatamente para o final e desmascara-nos os culpados, sem quaisquer dúvidas. Esse medo invisível torna-se visível para todos, ou, pelo menos, óbvio.

Nesses primeiros minutos vemos também duas raparigas a varrerem a entrada de uma casa, até que uma delas repara numa pequena flor vermelha e apressa-se a apanhá-la e enterrá-la para que ninguém a veja. O vermelho é a cor proibida na vila, porque simboliza a mesma cor usada pelas criaturas. Esta transformação do visível em invisível (planta que é imediatamente apanhada e enterrada) funciona de forma transversal à sua própria metáfora, onde estas criaturas são imediatamente referidas, expostas verbalmente ao espectador.

Estas duas cenas reflectem um dos temas principais do filme, a diferença entre aquilo que é invisível e aquilo que é visível, através do medo. Qual desses medos o maior e qual deles o mais importante para a estrutura e paz de uma vila isolada? O medo invisível ou o visível?

Este paralelismo é representado também através dos seus personagens. A personagem de Bryce Dallas Howard (Ivy), que é cega, consegue ver a “cor das pessoas nas suas almas”. Isto é, obviamente, uma metáfora que existe para simbolizar a sua sensibilidade, enquanto pessoa sem visão, para conseguir percepcionar quem são as boas ou más pessoas. Neste caso estamos perante o invisível (ausência de visão) que consegue distinguir algo também invisível (a cor da alma) até mesmo para quem consegue ver. No fundo, Ivy é quem melhor consegue ver numa vila onde todos têm visão menos ela, daí “correr como um rapaz”, conseguir perceber quem está à sua volta e movimentar-se como se fosse capaz de ver. A sua incapacidade não a afecta porque a sua maior capacidade é conseguir ver o invisível.

Temos também a personagem de Joaquin Phoenix (Lucius), uma pessoa calma, controlada, quase invisível a nível de personalidade, mas bastante visível através da sua beleza e alma. “You wonder how I recognized you? Some people – just a handful, mind you, give off the tiniest color. It’s faint, like a haze. It’s the only thing I ever see in the darkness.”, diz Ivy a Lucius. Esta referência à escuridão pode ser interpretada de diversas formas. De forma óbvia, referindo-se à sua cegueira, ou de forma indirecta, referindo-se a tudo à sua volta, à vila, às suas pessoas. Também a coragem de Lucius é algo que impressiona muita gente, coragem essa que é, à partida, mascarada pela ausência de palavras, mas tão clara nas suas acções.

O invisível e visível é explorado através de todos os detalhes, desde as caixas de memórias seladas que cada um dos anciões tem, aos próprios monstros, visíveis a toda a população, mas invisíveis na sua verdadeira natureza e origem.

Os diálogos são também eles de excelência, assim como os actores, banda sonora e fotografia, criando um ambiente melancólico e poético sem nunca roçar o ridículo ou exagerado. Há uma coesão perfeita em cada cena e detalhe de “A Vila”.

M. Night Shyamalan leva-nos a questionar o que é mais importante para nós, até que ponto é que somos atingidos pelo medo do invisível e do visível. Tememos mais aquilo que conseguimos ou aquilo que não conseguimos ver? Todas estas questões são exploradas nos exemplos anteriores, mas também através da personagem de William Hurt e dos outros anciões. Os seus medos, vidas passadas e segredos criados através desses próprios medos abriram uma nova realidade para as gerações mais novas, uma realidade onde não existe divisão entre o visível e o invisível, e isso só os grandes realizadores são capazes de criar.

João Fernandes