“Este país, senhores, é um poço onde se cai. Um cu de onde se não sai.”
Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço (1971) é a obra inicial e proverbial de João César Monteiro, da qual é realizador, argumentista e produtor. É um filme sem enredo mas nostálgico, melancólico e composto por cenários, citações, diálogos e falas num deambular por uma Lisboa já inexistente.
Luís Miguel Cintra é Lívio, a personagem iludida, a par de Carlos Ferreira que interpreta o seu amigo Mário, o entusiasta. A Fotografia é da responsabilidade de Acácio de Almeida e o Assistente de Produção foi Jorge Silva e Mello. No que diz respeito ao seu aspecto técnico, esta longa-metragem “falhada” transforma-se então numa curta de 33 minutos, sendo filmada a preto e branco, em 16mm.
Por conseguinte, nesta obra, vemos nascer a ousada arte cinematográfica de indivíduos extremamente importantes para o movimento vanguardista português que foi o Novo Cinema. A rodagem deste filme teve lugar no ano de 1965, apesar de só ter sido exibido nos anos 70 (estreia privada em 1971 na Fundação Calouste Gulbenkian, que subsidiou o filme). Por isto, este provérbio cinematográfico foi filmado em plena ditadura, representando o poço fundo em que a juventude daquele tempo se encontrava. Repugnante.
Toda a irreverência e imprevisibilidade de João César Monteiro estão, na verdade, centradas nestes dois amigos, representantes máximos da ilusão da juventude e de uma certa violação da inocência. Bruno e Lívio ilustram os inúmeros jovens, do passado e do presente, que desencantados vão vivendo numa redoma de procrastinação e boémia, passando os seus dias em profunda divagação pelos mais variados cafés lisboetas. Sem saber o que fazer à vida, ver passar o tempo é o passatempo preferido de ambos.
João Bénard da Costa diz sobre as vozes do filme: “Aliás, um dos efeitos mais estranhos, sabendo-se o que hoje se sabe, é a identidade deste Lívio. Se a imagem é a de Luís Miguel Cintra, no seu primeiro papel no cinema, a voz é a voz de César, ou seja a voz de João de Deus e, como a voz off é muito mais relevante do que a voz in, César sobrepõe-se sempre a Cintra, numa dualidade quase alucinante. (…) Mas se é imenso o silêncio de Lívio em todos os momentos por assim dizer decisivos, cabem à voz dele (à voz de César) todos os monólogos do filme, quer quando fala das suas origens (…)”.
Quem Espera Por Sapatos De Defunto Morre Descalço é então uma curta-metragem de ficção que se faz sublinhar por uma temática ousada e uma filmografia bastante concreta e formal. A narrativa patética é personificada pelo ocioso e letárgico Lívido Lívio, um jovem intelectual lisboeta proveninente de uma família burguesa, que num acérrimo companheirismo com Mário vai calcorreando a cidade na esperança infrutífera de amealhar algum dinheiro que lhe preencha o vazio do bolso pois “é mais difícil renunciar ao amor do que à vida”.
Pouco vocacionados para negócios, até que alguma necessidade económica quotidiana os obriga a arranjar forma de obter dinheiro de um modo pouco sério e digno, ambos elaboram estratagemas para ludibriar viúvas e obter regalias em forma monetária mas também em forma de objectos ou outros.
Sendo um filme extremamente poético e metafórico, João César Monteiro pretende projectar de uma forma meio silenciosa os fantasmas salazaristas através de uma premissa base, a dos diálogos nutridos de sarcasmo e ironia, representando o tempo das lojas de penhores, dos indigentes filosóficos e da incerteza relativa aos tempos vindouros. Todos os diálogos são inexperientes mas a câmara é impertinente e é esta inconveniência que nos concede o formato mais genuíno daquilo que é ser um jovem que anseia a liberdade em plena ditadura.
Urge nunca repetir o local do crime. Sapato, sapato, sapato.