“Recordações da Casa Amarela” é um filme-chave na obra de João César Monteiro. Não só por sintetizar perfeitamente todos os elementos estéticos, tonais e narrativos através dos quais reconhecemos, hoje, o seu corpo de trabalho, mas também por nos apresentar pela primeira vez João de Deus. E quem é esta personagem que, fazendo jus ao pedido de um amigo, tanto trabalho nos deu? Com nome de santo padroeiro dos pobres e enfermos, é nesta condição que o encontramos – numa igreja, pois claro. Hospedado na casa de D. Violeta – católica devota, de pendor avarento – vai alternando a sua precária sobrevivência com escapes de alta cultura e privadas pulsões efebófilas, até que um acontecimento fatídico o empurra para o olho da rua e para a dureza da vagabundagem. É então que uma visita ao manicómio lhe dá a clareza e força de espírito de que necessitava para seguir em frente.
Mais do que alter ego do autor, é a personificação do cinema monteiriano que aqui encontramos. O veículo de um olhar sarcástico e implacável para com o país que “é um cu de onde não se sai” – como dizia Lívio em “Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço“, aqui reencontrado no hospício. A potência absoluta de subversão dos bons costumes, da família, da fé, da propriedade e do trabalho, através da qual, paradoxalmente, evidencia quão pouco presentes estão estes valores em todo o cortejo de personagens que se esforçam sobremaneira por os fazer cumprir.
Não espanta ler, nos créditos finais, que a passagem que abre este filme, recitada em voz off, é de Céline. Dentro das inúmeras referências que pontuam os diálogos e as imagens de João César Monteiro, a literatura do escritor maldito francês é a que mais ecoa em “Recordações da Casa Amarela”. João de Deus em muito se assemelha ao Ferdinand de “Viagem ao Fim da Noite” e “Morte a Crédito”: um indivíduo financeira e moralmente indigente, praticamente insignificante, mas portador de uma nuvem negra capaz de desfazer as vidas de quem priva com ele para lá da cortesia social. Ambos caminham por vielas apodrecidas pelo tempo e pelos tempos que vivem, sem outro rumo que não o da coceira (que anda muito longe da satisfação) das suas comichões narcísicas, numa espiral de degredo físico, psicológico e moral. Ambos se livram de poiso e dinheiro com despojamento. Ambos vão apenas aonde o próximo sorvedouro, de prazer ou sobrevivência, se encontrar.
Também em termos de estrutura narrativa “Recordações” se aproxima das obras de Céline. É um percurso episódico, cuja cor é dada pelas personagens e cenários encontrados, bem como pela relação estabelecida entre eles e o sujeito. Nos dois casos, é desses relacionamentos passageiros que emanam as críticas à podridão humana. A diferença é que onde as estórias de “Viagem” e “Morte” eram distintamente francesas – ensombradas pelos elementos históricos, políticos e sociais da França da primeira metade do século XX -, a de “Recordações” é indelevelmente portuguesa. Podemos já não nos lembrar da antiga Lisboa como um pardieiro onde as pessoas se reuniam com os vizinhos, num pátio, para festejar um aniversário, ao som de fado, e onde os empregados de leitarias com barricas de vinho tratavam os clientes pelo primeiro nome, mas não há como ignorar todos os elementos que estão marcados a fogo na nossa memória coletiva: a população exageradamente beata, mas aviltante e brejeira; a menina que toca na banda filarmónica da polícia; as velhas que “vêm ver” à janela e acabam aos insultos; os homens com o botão de cima das camisas permanentemente desabotoado; os pequenos esquemas; o fado e o pimba… Está lá tudo.
Aqui se encerra a grande diferença entre os dois autores. Enquanto que Céline destila uma misantropia sem quartel para com o seu semelhante (quer o francês, quer o humano), por intermédio do seu alter ego/narrador, “Recordações” parece deixar, para lá do humor corrosivo e da crítica social, uma réstia de compaixão melancólica por todos os pobres diabos (e não se usa “diabos” de ânimo leve) que o povoam. O mesmo pode ser dito da religião ou de Portugal. Monteiro tempera cada momento escarninho – uma pietà invertida, em que o filho desnaturado pede dinheiro à mãe; considerações explícitas sobre a vida conjugal, à janela, para todo o bairro ouvir; os momentos finais do cão de uma prostituta… – com um sentimento de reverência. Talvez seja o olhar cinematográfico que, contrariamente à literatura, nos pinta o mundo para além das considerações de uma só voz narrativa (ou apenas os nossos olhos mais brandos), mas será difícil crer que por detrás de toda a repulsa não exista uma ternura pelo mundo que nos é apresentado. Pensemos nas frases que abrem o filme:
Na minha terra chamavam casa amarela à casa onde guardavam os presos. Por vezes, quando brincávamos na rua, nós, crianças, lançávamos olhares furtivos para as grades escuras e silenciosas das janelas altas e, com o coração apertado, balbuciávamos: “Coitadinhos!…”
A condescendência não deixa de se consubstanciar com o temor e a compaixão. Nem Monteiro, nem João de Deus podem desdenhar totalmente das personagens que ridicularizam, quando qualquer um deles está também na Casa Amarela. Uma prisão que impregna todos os lugares e, ao mesmo tempo, é muito menos um lugar do que um estado de espírito. Trata-se, antes, de um imperativo transcendental que nos diz para contermos apetites, respeitarmos normas, sermos produtivos e conformarmo-nos. A mesma ordem abstrata, mas férrea, que encontra nos portugueses o desejo coletivo de aceitar as coisas como estão – de se esforçarem até para que assim se mantenham – e que é comunicada entre eles através de provérbios e máximas de boa conduta. A missão de João de Deus passará por se libertar destas grilhetas – algo que conseguirá em modo Nosferatu, depois de uma passagem pelo manicómio -, mas Monteiro nunca será inteiramente capaz, porquanto esta identificação com aqueles que partilham a nossa choldra torpe se manifesta respeitosamente em frescos tão detalhados que se tornam carinhosos.
“Recordações da Casa Amarela” é um amargo e relutante compadecimento por tudo o que somos. O fado filmado e desromantizado, onde a fachada de Lisboa é trocada pelas vielas escuras e degradadas; onde filhos ignoram mães e mães se preocupam mais com dinheiro do que com filhas atacadas; onde a magnificência de interiores de igreja se cruza com percevejos na cama; onde Schubert ressoa (não diegeticamente) na sujidade das paredes da cidade e dá um (diegético) abraço a Quim Barreiros; onde o futebol e a cinefilia não são mutuamente exclusivos. É o reconhecimento de que ainda que as mais belas flores não deixem de nascer nos interstícios das pedras da calçada, estarão sempre condicionadas pelo seu peso e imundície.