Dossier Hayao Miyazaki Vol. VII – Princesa Mononoke

A grande floresta sagrada e a indústria. Deuses, espíritos, e demónios. E os “ridículos humanos” que, movidos por ambição, transformam e destroem o mundo natural que os envolve. Grande poema generoso a uma terra Verde, um épico acerrimamente ambientalista. E provavelmente a obra maior de Miyazaki.

Não longe dum western “oriental” – e John Ford é um dos cineastas preferidos de Miyazaki -, “Princesa Mononoke” segue Ashitaka, jovem principe Emishi que, envenenado (ou melhor, amaldiçoado) ao contacto do braço com um deus-javali tornado demónio, deixa a sua vila natal na procura de respostas e duma improvável cura para o seu mal. O filme decorre num Japão medieval imaginário, habitado por criaturas fantásticas, saídas dum riquíssimo mundo natural cujo equilíbrio vital se vê, então, ameaçado pela crescente actividade humana. Na procura de ajuda pelo “grande espírito da floresta” (um veado de rosto humano que se torna numa espécie de daidarabotchi nocturno), o périplo de Ashitaka leva-o a Iron Town, cidade em expansão, cuja actividade industrial provoca um conflito permanente e crescente com a densa floresta sagrada vizinha. Acolhido pelas gentes da cidade, e empenhado na causa da floresta, Ashitake ver-se-á enredado numa missão de, digamos, mediação, aparentemente impossível, entre o intento bélico crescente dos humanos, e a agressividade incondicional dos animais da floresta. Um violento confronto entre civilizações, cuja catástrofe pressentida será, veremos, inevitável. Até porque, todos conhecemos o desfecho ao qual o realizador quer aludir, que é, efectivamente, o da nossa realidade contemporânea.

“Princesa Mononoke” (“Princesa dos Espíritos”, numa tradução literal do título japonês Mononoke-hime) foi o filme com o qual Miyazaki se fez reconhecer definitivamente fora do Japão. No seguimento de um acordo comercial com a Disney, em 1996, para a dobragem e distribuição das obras da Ghibli, Mononoke seria distribuído nos EUA pela Miramax (subsidiária da Disney), com Claire Danes na voz da personagem titular. Harvey Weinstein tentaria que o filme fosse re-editado e reduzido dos seus 135 para 90 minutos – de forma a mais adequadamente se orientar ao público americano – mas acabaria por receber, em resposta pelo correio, uma espada de samurai oferecida por Toshi Suzuki (produtor do filme), com a simples mensagem “no cuts”. O filme teria um sucesso internacional modesto e tardio (tendo, no Japão, sido o filme mais rentável de 1997, e, na altura, de sempre), mas abriria a porta de Miyazaki a outros horizontes mediáticos, que se confirmariam com o inevitável óscar de “A Viagem de Chihiro”, em 2003.

Discorrendo sobre um conflito violento sem uma aparente solução, “Princesa Mononoke” parece encontrar voz no desencanto expresso por Porco Rosso (do filme precedente de Miyazaki) para com o panorama social e político que testemunhava. Efectivamente, o cinema de Miyazaki não voltaria a reencontrar, apesar de Ponyo, aquela inocência que, na segunda metade dos anos 80, fora a sua força ao longo de três filmes inesquecíveis.

“[A realização de Mononoke] foi um risco enorme, totalmente diferente de quando fiz Kiki. Tinha tido essa experiência com Porco Rosso, a guerra começou [na ex-Jugoslávia] e aprendi que o Homem não aprende. Depois disso, não podíamos voltar atrás e fazer um novo filme como “Kiki’s Delivery Service”. Parecia que as crianças nasciam num mundo sem serem abençoadas. Como é que podíamos fingir-lhes que éramos felizes ?

(Miyazaki entrevistado pela Empire, em 2011 – trad. Tribuna)

Evocando temas próximos de Nausicaa (1984), Mononoke encena uma parábola clara e concreta sobre a destruição ambiental conduzida pela industrialização do mundo, ou pela simples actividade humana. A trama do filme é, contudo, consideravelmente mais complexa e sinuosa, rica das ambiguidades e ambivalências próprias às personagens e enredos desenhados por Miyazaki. Seja Eboshi, líder de Iron City e inabalável dama de guerra, a principal figura antagónica do filme, esta dama de ferro revela-se também um exemplo de perseverança e liderança, e sobretudo uma figura de “abrigo” para os seus súbditos. Iron City é, para todos os efeitos, uma cidade livre, que acolhe antigas “trabalhadoras do sexo”, oferecendo-lhes uma oportunidade e relevância social, uma hospitalidade que não terão conhecido no Passado. Eboshi alberga e emprega igualmente uma comunidade de leprosos, que encontra refúgio e conforto ao centro da sua cidade. Por tanto que a sua ambição seja motor da destruição contada pelo filme, as suas acções serão essencialmente motivadas pela necessidade de proteger o seu povo, e sem um intento natural de agressão. Por outro lado, sem mascarar as atrocidades provocadas pelos humanos, Miyazaki literalmente forma à cegueira dos animais (o deus javali branco) que, alimentando a cólera para com os humanos e sua apropriação da floresta, será um elemento chave do desenlace catastrófico da história.

Se se trata aqui de um filme de aventura num contexto de confronto militar, a “guerra” de Miyazaki é um teatro complicado, onde verdade e justiça não se encontram concretamente de um dos lados em disputa. A posição do realizador (possivelmente personificado em Ashitaka) é, ainda assim, evidente, mesmo se “revelada” essencialmente pelos magníficos valores formais do filme. “Princesa Mononoke” será primeiramente um inigualável triunfo formal e estético. Um épico romântico, monumental e deslumbrante, que enche a tela de vastas paisagens sob céus de Constable, e magníficas criaturas. Uma obra rara e importante de cinema. E, enfim, um ensanguentado grito de revolta, por um mundo verde que se esgota debaixo do impiedoso fogo humano.

Miguel Allen