Na experiência visual e cinematográfica Ghibli, é sempre esperada alguma carga dramática a par da personificação do mal recorrendo a elementos figurativos e de bizarra caraterização. Nesta obra, Hayao Miyazaki foge a essa dinâmica, criando um universo gentil e encantador, deveras amigável e sem conflito. Nele, uma jovem bruxa, no seu obrigatório ano de vida independente e de emancipação parental, descobre sentimentos como a insegurança, a frustração e a dificuldade de adaptação à distância do lar e do conforto que nele encontrava.
A inserção de Kiki e da sua magia na sua nova comunidade é inicialmente árdua e complexa, tornando-se uma outsider que se destaca e diferencia dos demais pelas suas vestes escuras. Acudindo sempre à companhia do seu gato preto Jiji, parceiro de todas as horas e amigo inseparável, a jovem vai encontrando no seu caminho inúmeras personagens que lhe demonstram que é na entreajuda e apoio mútuos que podemos proliferar enquanto seres sociais. Apesar de se sentir perdida e monetariamente destituída, é sugerido a Kiki que recorra à sua arte, e que disto retire proveito para se sustentar, mais especificamente ao bom domínio da sua vassoura, através de um serviço de entregas por correio aéreo.
É nesta alegoria que Miyazaki se antecipa, relembrando os modernos e criativos jovens contemporâneos que recorrem ao conhecimento profundo das suas melhores capacidades e qualificações para obter algum benefício económico e laboral, trabalhando por sua conta e risco. É óbvio que em 1989 Miyazaki não antecipava uma crise geracional, no entanto, Kiki’s Delivery Service é uma obra que retrata o esforço de uma jovem para encontrar o equilíbrio entre a carreira profissional e a satisfação e realização pessoal, por meio da criatividade, evitando o desgaste físico e mental, tendo sempre como meta o encontro da felicidade.
Apesar de nos momentos iniciais do filme, o espectador se sentir aparentemente sem rumo e a vaguear, percorrendo cada missão de Kiki de forma quase episódica, o realizador tece com imensa humanidade e gentileza uma infinita rede de personagens, elos e ligações com momentos de procura pela felicidade e liberdade, lugares-comuns mas que, no fundo, representam a meta de qualquer um.
Kiki’s Delivery Service é naturalmente um coming-of-age que se apresenta como uma parábola de maturidade física e espiritual para jovens raparigas que encontram o seu caminho no mundo através da ajuda e suporte de outras mulheres. Num período moderno fortemente marcado pelo empoderamento feminino, em 1989, já Miyazaki ensinava que as mulheres independentes não são necessariamente mulheres solitárias, mas sim seres que se fortalecem mutuamente, reforçando o seu poder de elevação e superação por meio da partilha de saberes e na instigação ao sucesso pessoal e colectivo.