Quando Howl’s Moving Castle chegou aos cinemas, em 2004, vivíamos tempos conturbados. O choque de um atentado terrorista de grande magnitude, em pleno território norte americano, fora elevado a trauma coletivo absoluto do mundo ocidental. A propaganda, fomentada pela ganância de diversos decisores mundiais, transformara a dor de muitas famílias em sentimentos de fúria e em sede de vingança, gerando o consenso necessário para viabilizar duas invasões no Médio Oriente, no espaço de 2 anos. A revolta de Miyazaki com as guerras do Afeganistão e do Iraque – já patente na célebre falta de comparência à cerimónia dos Óscares onde Spirited Away vencera na categoria de Melhor Filme de Animação, um ano antes – manifestou-se naquele que é, provavelmente, o mais didático dos seus filmes. Um filme que, contra as convicções do próprio autor, acabou por ser também um dos mais bem recebidos pelo público de todo o mundo. Revisitá-lo, quase 20 anos depois, deixa um gosto agridoce. Amargo pela infeliz intemporalidade que adquiriu, fruto de todos os degraus de desolação que subimos na ordem mundial, desde então. Doce, naturalmente, pelo encanto detalhado e sonhador das imagens, mas também pelo pequeno consolo de alguém ter ousado um cri de coeur tão cândido quanto comovente, na esperança de que alguém o pudesse ouvir.
São comuns as críticas a uma mensagem simplista – que se reduziria a um “a guerra é má” – ou a um terceiro ato “confuso” ou “absurdo”. A verdade é que o coração desta jornada, que se apresenta, à superfície, como uma mescla de Wizard of Oz e Give Peace a Chance, não reside no enredo ou na estrutura. A preocupação e o labor de Miyazaki prendem-se sobretudo com o que o ser humano perdeu (ou nunca teve) e o que precisa de recuperar (ou aprender), de forma a sobreviver à própria barbárie. É por isso que nenhum dos lados do conflito é visto como o bom ou o mau, nem é, aliás, nomeado. É por isso que o foco não está na guerra em si, ou em atos violentos. É por isso, até, que esta não é uma história sobre como os heróis se juntam para pôr fim ao conflito. É uma história sobre o que vem antes. E antes, o que encontramos é um punhado de personagens à deriva. Sós, alheadas, presas a agonias pessoais. Sophie é uma rapariga solitária, triste e pouco confiante, que se faz à estrada apenas com o objetivo de reverter um feitiço que a envelheceu drástica e repentinamente. Howl, o mago talentoso, luta na guerra mas sem propósito, procura por todos os meios esconder-se do mundo, é inseguro e está deprimido. Markl, o discípulo de Howl, cresceu com o mestre neste ambiente de fuga, é só o que conhece. Calcifer, o demónio de fogo que faz mover o castelo, está sempre à beira de extinguir-se e é, também ele, vítima de uma maldição. As aflições que constrangem cada um deles alienam-nos do cenário maior, dificultam a empatia e, consequentemente, inviabilizam qualquer reação ao flagelo bélico. Como podem ter qualquer influência nos acontecimentos, se nem estão em controlo de si próprios? (Como podemos nós?)
A grande mudança será catalisada por Sophie, através dos laços que, sem se dar conta, começa a criar entre todos. A heroína não tem poderes sobrenaturais, nem acesso à magia, mas é a única capaz de aceitar a sua nova condição, libertando-se o suficiente da própria dor para observar o que a rodeia e, com inconformismo, transformar o próprio sofrimento no apoio de que os outros necessitam. Para Miyazaki, é da pessoa comum que tudo emana. A que faz das tripas coração, mas também a que é espiritualmente mais livre, honesta e disponível para se colocar no lugar do outro. É a mulher idosa – sábia, trabalhadora, cuidadora – a pedra angular da humanidade. São os seus atos aparentemente prosaicos – convocar os habitantes do castelo a limpá-lo de alto a baixo, reuni-los para um pequeno almoço farto… – que adquirem uma dimensão épica. O labor maternal dá a Howl, Markl e Calcifer o que até aí não tinham tido: cuidado, atenção, um sentimento de pertença, uma família. Atos altruístas que também têm influência em si própria: quando começa a aceitar-se melhor, quando deixa o amor entrar, rejuvenesce. Por outras palavras, é de dentro para fora, do particular para o geral que se muda o mundo.
Esta lógica narrativa tem eco no dispositivo expressionista que Miyazaki aplica ao longo do filme. Se, por um lado, podemos observar como as divisões do castelo andante são tão mais soturnas ou luminosas consoante as oscilações de humor de Howl, ou como o corpo de Sophie se modifica quando esta se sente mais confiante ou apaixonada, também percebemos como as ações das personagens têm influência direta no meio circundante. Se o castelo andante é uma representação direta do espaço mental de Howl, arrumar a casa significa necessariamente arrumar a cabeça. O apoio de Sophie é incondicional, a gratidão de Howl começa a mostrar-se e da última vez que sai para lutar já não é para fugir, já não é por vaidade ou por puro niilismo. Agora, como o próprio afirma, tem algo por que lutar. Criou-se uma comunidade. A resistência, em nome da paz, (só agora) é possível.
A história não termina realmente quando a guerra chega ao fim, mas sim quando Sophie devolve o coração (a coragem, a compaixão, o amor) a Howl. Quando este reencontra a humanidade que estava a perder, sempre que simbolicamente se transformava no gigante pássaro negro. Quando todos os vencidos da vida se unem para remar no mesmo sentido. Se a união faz a força, amar é (começar a) vencer. Patético? Talvez, mas face à atomização da humanidade, à prisão mental dos discursos de valorização pessoal, ascensão de discursos de ódio, discussões facciosas, acusações paranoicas e à generalizada falta de empatia e confiança para com os nossos semelhantes, não precisaremos todos de um pouco mais desta patetice?