Após dois filmes bastante distintos entre si (e uma série televisiva que pendia sobretudo para os valores estéticos pelos quais Miyazaki é hoje mais reputado), “O Castelo no Céu”, de 1986, primeira produção oficial do estúdio Ghibli, é talvez a primeira obra da maturidade artística do realizador: um filme que dialoga tanto com Cagliostro como com Nausicaä, que o precedem, e que estabelece, na verdade, rimas com toda a obra futura de Miyazaki. O seu primeiro filme “perfeito”, o valor criativo e estético do mundo de fantasia que ilustra e das suas personagens é simplesmente maravilhoso (e nisso, como fora já o “mundo” de Nausicaä). Mas “O Castelo no Céu” revela também uma rara destreza narrativa, um encadeamento formal cativante, que representam, para o realizador, um importante avanço em valores (puramente) cinematográficos.
A ficção científica “retro-futurista” das imagens parece beber tanto da revolução industrial europeia – Miyazaki menciona a sua viagem de 1985 ao País de Gales, na qual testemunhara a greve dos mineiros de carvão, como grande influência -, como de experiências e utopias aeronáuticas dos finais do século XIX e início do século XX. Esses conceitos, explorados num mundo de fantasia de data algo incerta, promovem um filme rico em pormenores e pequenos detalhes (veja-se a primeira chegada dos heróis ao navio aéreo dos piratas), duma criatividade aparentemente desenfreada da qual Miyazaki faria norma.
Tudo começa com um assombroso salto no vazio, após um prólogo que, de toda a filmografia de Miyazaki, é bem capaz de ser a sequência mais divertida que não se apoia em quaisquer elementos fantásticos, sobrenaturais ou sentimentais. Evocando imagens duma terra em chamas (a assustadora sequência da destruição da base militar pelo robot) em contraste com uma Natureza resplandecente porque abandonada, o filme conta a história do corajoso Pazu, jovem mineiro, e da misteriosa e sensível Sheeta, duas crianças que partem em busca duma lendária ilha flutuante por entre as nuvens do céu. Objecto da ganância e cobiça de dois grupos antagónicos que guerreiam em torno dos protagonistas, o mito de Laputa (tirado de Gulliver’s Travels de Jonathan Swift, com um nome infeliz para os tradutores latinos) é o horizonte enigmático das interrogações aéreas de Sheeta e Pazu – das suas interrogações sobre identidade, origem, e paixão.
Como noutras obras de Miyazaki, o Futuro estará aqui nas mãos – no coração, na pureza e honestidade – de duas crianças. O desenlace de “O Castelo no Céu” revelar-se-á não sem a sua amargura, sobretudo pela ilusão (ou esperança) que confiamos àquela aventura. Três moedas de ouro e o céu em fogo. A vontade dos homens move-se infelizmente de ambição e sede de império, e por isso de força e destruição. E “O Castelo no Céu” tanto nos fala de sonhos e do céu azul, como da perversão da magia do mundo e da Natureza às mãos dos homens.
Enfim, o filme reflecte as recorrentes preocupações ambientais e antimilitaristas do realizador, como ilustra a sua ambivalência para com a tecnologia e/ou evolução tecnológica – temas transversais da obra de Miyazaki -, mas serão as relações fortes entre as suas personagens, com ênfase em figuras um tanto marginais, que levarão mais alto o sentimento e visão deste “Castelo no Céu”. Relembrando Hawks, ainda mais do que pelas suas fantásticas máquinas do ar, uma heteróclita galeria de aventureiros habita um filme que se quer cheio de vida – veja-se, claro, a animada família de piratas que adopta os nossos heróis. E será também o humanismo de Miyazaki, que acredita profundamente nos valores e sentimento destas suas personagens, que o aproxima do cinema (ainda que formalmente muito distinto) de Jean Renoir, outra presença recorrente na sua obra.
Uma aventura através de montanhas de vento, contra nuvens gigantescas, e frente a ameaçadores navios de guerra. Saudar o mundo e o seu céu azul ao acordar, a melancolia latente dos nossos sonhos. Sobre mitos que, se sabemos existirem, jamais se oferecem aos nossos olhos.