A cena inicial de Nausicaä do Vale do Vento (1984) bem podia ser de um western de animação: um viajante solitário, de chapéu de cowboy e longa capa castanhos, percorre uma cidade deserta – não se assemelhasse o seu método de transporte a uma avestruz e usasse uma máscara em forma de focinho de cão. Neste universo, a sociedade industrial desapareceu após o surgimento de uma massa vegetal tóxica que inviabiliza a vida humana por todo o lado por onde se espalha. Conquanto as cores vibrantes e desenhos únicos do filme nos puxem de imediato para o seu mundo fantástico, os contornos do enredo lentamente nos fazem despertar para as problemáticas da nossa própria realidade.
Esse é, porventura, dos aspectos mais impressionantes do filme de Miyazaki: a sua riqueza é tal que nele parece coexistir tudo, sem que qualquer um dos seus elementos tenha de fazer cedências a um outro. A sua construção de universo é tão mais envolvente quanto nos relembra de questões reais – o ambiente, a guerra -; a simplicidade comovente que emana da personagem central contrasta com a complexa frieza do mundo que a rodeia; o seu apelo parece tão capaz de enfeitiçar crianças como surpreender adultos.
Em Nausicaä, a natureza não ameaça os humanos com eventos climatéricos extraordinários, mas com toxinas e insectos gigantes capazes de destruir cidades inteiras, porém, de igual modo, estes são resultado das acções poluentes da sociedade ao longo do tempo. Este ecossistema, serve, aliás, como descobrimos, para limpar o planeta da poluição. Embora seja a personagem titular que faz esta descoberta, os demais habitantes do seu reino no Vale do Vento já tinham o conhecimento empírico de que é possível coexistir com a Natureza, aproveitando os seus recursos de maneira sustentável, incluindo os do ecossistema tóxico.
Visão diferente têm outras nações, que, cada uma à sua maneira, olha para o militarismo como resposta para os seus problemas, pelo que, quando surge a informação de uma arma mais poderosa que todas as outras – uma referência nunca inocente na cultura japonesa -, o seu belicismo para com a Natureza passa agora também a refletir-se no relacionamento entre nações, que competem pelo controlo da arma. A escalada de violência é inevitável.
Raramente pensamos em Hayao Miyazaki como um artista interventivo ou abertamente político. Facto é que o autor nunca escondeu as suas convicções – relembramos que em 2003 recusou deslocar-se aos EUA para receber o Óscar de Melhor Longa-Metragem de Animação em protesto à invasão do Iraque. Nausicaä do Vale do Vento não será sequer a sua única obra que reflecte esta visão. Se por um lado a animação é vista nos países ocidentais como um terreno maioritariamente dedicado a um público infantil, por outro muitos fãs de animação japonesa nestes mesmos territórios tendem a afastar leituras mais políticas das obras. Contudo, a capacidade de nos mover pelas suas ideias fundamentais não deixa nenhum espectador de Nausicaä indiferente. Ele é, como a não ida de Miyazaki aos Óscares, um protesto silencioso e, como qualquer protesto, o que o alimenta é a esperança de que um mundo melhor é possível.