Dossier Francis Ford Coppola, Vol. VI – Drácula de Bram Stoker (1992)

Carla RodriguesOutubro 28, 2024

Os vampiros são das criaturas mais versáteis e fascinantes da sétima arte. Desde os primórdios do cinema mudo até às produções contemporâneas, a figura do vampiro tem sido um reflexo das ansiedades, medos e desejos da sociedade. Ao longo do tempo, a sua presença no grande ecrã tem sido adaptada, talhada, moldada para se alinhar com as transições culturais que se vão fazendo sentir no nosso mundo. Nos primeiros tempos, o vampiro simbolizava uma ameaça sobrenatural quase invencível, como em Nosferatu (1922), onde a sua figura grotesca refletia os horrores do desconhecido e as inseguranças do pós-guerra. Pouco depois, Vampyr (1932), de Carl Theodor Dreyer, trouxe uma atmosfera surreal ao género, desafiando as convenções da época e explorando o sobrenatural de maneira mais subtil e psicológica. Horror of Dracula (1958), da Hammer Films, com Christopher Lee no papel do vampiro mais icónico de sempre, revitalizou a figura vampiresca com um estilo mais violento e sensual, contrastando com o charme aristocrático do Drácula (1931) de Bela Lugosi. Nos anos 70, Vampyros Lesbos (1971), de Jesús Franco, misturou erotismo e surrealismo, mergulhados numa atmosfera psicadélica e provocadora que se tornou um culto dentro do subgénero dos vampiros; e Blacula (1972) reinventou o mito através da lente da blaxploitation. Na década seguinte, The Hunger (1983), com Catherine Deneuve e David Bowie, incorporou o glamour simultaneamente decadente e sensual dos vampiros na cena pós-punk. Filmes como Near Dark (1987), de Kathryn Bigelow, e The Lost Boys (1987) trouxeram os vampiros para um contexto urbano de alguma vulgaridade, misturando o terror com a estética rebelde dos anos 80. Contudo, com tantas versões e reinvenções praticamente desde o nascimento do cinema, a iconografia do vampiro tornou-se algo cliché, o que esgotou grande parte do terror e mistério associados à criatura. Drácula, em particular, era um ícone, o que levantava a questão: o que é que Coppola poderia trazer de novo à história deste temível Conde?

A resposta é: tudo.

Drácula de Bram Stoker

Como é habitual com Coppola, o seu objetivo com Drácula de Bram Stoker era ambicioso: fazer uma adaptação do romance de Bram Stoker, mas elevá-la, enriquecê-la e carimbá-la com a sua estética e arrojo inconfundíveis. Desde os primeiros momentos do filme, percebemos que Coppola não tinha interesse em fazer um filme de vampiros comvencional. E ainda bem. Onde muitas das versões anteriores se focavam principalmente nos elementos de terror, Coppola adotou uma abordagem mais ampla, transformando o mito do vampiro numa tragédia romântica, com rasgos de destino, luxúria, amor. O seu Conde Drácula, interpretado com uma elegância ameaçadora por Gary Oldman, não é apenas um monstro; é um homem atormentado pela tristeza e pelo desejo, condenado a uma imortalidade vazia. Mas a visão do autor não se limitou à reinvenção das personagens. Coppola  – talvez limitado pelo orçamento relativamente modesto do filme – rejeitou o uso de CGI, preferindo efeitos práticos e técnicas de filmagem que conferiram ao filme uma qualidade concreta e palpável. Tudo em Bram Stoker’s Dracula parece tangível.

Drácula de Bram Stoker

Esta abordagem marcadamente estética estendeu-se a todos os aspetos da produção. O visual icónico do filme deve-se, em grande parte, ao trabalho de Eiko Ishioka, a figurinista que saiu desta experiência com um Óscar no bolso. Os figurinos de Ishioka estavam a léguas do que já se tinha visto em adaptações anteriores. Parte do segredo terá sido a mistura de referências históricas com elementos surrealistas, que tornaram o filme ainda mais teatral e grandioso. A armadura de Drácula na cena de batalha inicial, por exemplo, parece mais uma criatura viva do que um simples adorno. É como carne exposta, uma segunda camada orgânica que sugere o próprio corpo como uma arma. À medida que a armadura o envolve, torna-se um símbolo da sua transformação numa criatura moldada pela própria violência, onde o desejo de vingança se torna indistinguível da sua própria natureza.

Na verdade, todos os visuais de Gary Oldman ao longo do filme contam uma história, são mais uma peça do puzzle que é este Drácula complexo e multidimensional. Como Drácula idoso e aparentemente frágil, isolado no seu castelo, Gary Oldman desliza com o seu icónico cabelo branco empilhado em duas poupas, numa figura que ecoa tanto a decadência quanto o poder milenar do vampiro. Porém, é a transformação de Drácula numa versão jovem, elegante e sedutora, vestida de preto e com óculos de sol redondos, que torna mais evidente o contraste entre o horror da sua natureza e o carisma que usa para atrair as suas vítimas. Esta versão moderna e quase punk de Drácula é um visual inesperado para um personagem de época. Espelha a tentativa de Coppola de tornar o clássico de vampiros simultaneamente intemporal e contemporâneo.

Drácula de Bram Stoker

O diretor de fotografia Michael Ballhaus transformou Drácula de Bram Stoker numa jóia visual, com cada cena composta de maneira a evocar tanto a beleza quanto o terror. O uso de efeitos práticos—miniaturas, pinturas em matte, perspetivas forçadas, exposição múltipla—realça a qualidade onírica do filme. O mundo de Drácula aproxima-se mais de uma alucinação do que de um cenário histórico. As cores irresistivelmente saturadas, as sombras carregadas de vontade própria, a decadência sumptuosa dos cenários, transformam cada plano numa pintura. A insistência de Coppola em usar técnicas tradicionais, em vez dos efeitos digitais que começavam a dominar os anos 90, é uma das principais razões pelas quais o filme envelheceu tão bem: onde outros filmes da época parecem datados, Drácula mantém a qualidade intemporal de um conto de fadas sombrio.

Apesar disto, o design e os visuais por si só não explicam o impacto duradouro deste filme. No cerne de Drácula está o fascínio de Coppola pelos temas do amor, desejo, morte e renascimento. Enquanto o romance de Bram Stoker era, essencialmente, uma história de terror, Coppola viu nele a oportunidade de explorar as bases trágicas da jornada de Drácula. Na sua versão, Drácula não é apenas um predador—é um homem destruído pelo amor, a sua imortalidade uma maldição que o obriga a viver sem a mulher que uma vez amou. É uma visão profundamente romântica, erótica e distorcida do mito do vampiro, que reflete as obsessões cinematográficas de Coppola com a fragilidade da vida e o desejo de transcendência.

Drácula de Bram Stoker

Um dos principais motivos pelos quais Coppola decidiu fazer Drácula foi a sua necessidade de regressar ao auge artístico que alcançara com The Godfather e Apocalypse Now. Depois de uma série de fracassos comerciais e da pressão financeira crescente, Coppola precisava de um sucesso. Mais do que isso, precisava de um filme que restaurasse a sua credibilidade como artista. Drácula não era apenas um potencial sucesso de bilheteira; era a oportunidade de Coppola reafirmar o seu lugar no panteão dos grandes realizadores de Hollywood. De muitas formas, foi um regresso ao seu estilo original. Uma lembrança, para quem precisasse, de que Coppola ainda era um realizador capaz de correr riscos e de ultrapassar os limites do cinema.

A receção inicial de Drácula foi mista, com alguns críticos a elogiarem a sua grandiosidade visual e ambição, enquanto outros sentiram que o estilo se sobrepôs à clareza narrativa. O público, esse, soube reconhecer a visão de Coppola: com uma bilheteira de 215 milhões de dólares e 3 Óscares, é um dos filmes mais bem sucedidos do realizador. Hoje, Drácula de Bram Stoker é considerado uma das adaptações mais distintas e ousadas do romance de Stoker, um clássico de culto que continua a fascinar o público com a sua mistura única de terror, romance e surrealismo. É um dos feitos mais ousados de Coppola. Um filme que desafia categorizações fáceis e abraça todo o potencial do cinema para transportar, perturbar e encantar.

Drácula de Bram Stoker

Drácula de Bram Stoker é um testemunho da crença de Coppola no cinema como uma forma de arte que pode—e deve—ser excessiva, audaz e emocional. É um filme que se deleita no seu próprio artíficio, desafiando os espectadores a perderem-se no sonho febril que evoca. E nas mãos de Coppola, esta velha história de vampiros e amor proibido transforma-se em algo mais do que um simples filme de terror—torna-se numa meditação sobre o poder do amor, a inevitabilidade da morte, e a linha ténue que separa os dois.

 

Carla Rodrigues