Parece impossível, nos dias que correm, partir às cegas para Apocalypse Now. A longevidade e estatuto consensual de obra-prima carregam um lastro tão pesado (e digitalmente omnipresente) de documentos, análises, referências e opiniões, que é muito difícil chegar virgem a um primeiro visionamento ou conceber, sobre este filme, ideias que não venham já com as sementes de outra lavra. Por outro lado, 45 anos após o seu lançamento, é difícil encontrar artefactos que não gravitem em torno dos mesmos assuntos: sejam as catastróficas peripécias da produção nas Filipinas (tantas vezes decalcadas do documentário Hearts of Darkness diretamente para o papel), as discussões sobre qual a melhor versão do filme (Theatrical Cut, Redux, Final Cut), comparações com o Coração das Trevas, de Conrad (obra da qual é adaptado), ou o requentado de considerações (e tralha) sobre os horrores da guerra, a dualidade viagem física / viagem interior e o absurdo da invasão americana do Vietname.
Tudo isto é, mais do que outra coisa, um atestado à qualidade de uma obra que tomou o mais sinuoso dos caminhos para atingir uma simplicidade muito rara: a de ser exatamente aquilo que apresenta. As explosões, o fumo multicolor, a selva, o rio, as mortes, mutilações e loucura, os monumentais cenários de Dean Tavoularis e a ajuda preciosa do trabalho de som de Walter Murch abrem infinitas possibilidades, precisamente porque, enquanto elementos isolados, não procuram ser mais que a argamassa do que se mostra, sem subterfúgios, aos nossos olhos (e ouvidos) no produto final. Bom trabalho da equipa, ótimas notícias para o espectador, um desastre para quem tem de escrever.
Importa, neste quadro, esclarecer que este texto, que se debruça sobre a versão Redux, recusará repisar os temas da praxe, já amplamente dissecados por penas mais hábeis do que a minha, ou insistir em (re)validar a opinião consensual de que este é um dos melhores filmes alguma vez concebidos. Esse trabalho está feito, e acredito que ao leitor também não interesse ver por aqui o que lhe aparece em qualquer outro lugar, ao pesquisar as palavras “Apocalypse Now”. Mesmo não podendo fugir às dinâmicas que moldam a priori a nossa relação com o cinema, na atualidade, podemos sempre (e talvez devamos mesmo) lançar grãos de areia na engrenagem de conteúdos indistintos que anda à roda pela mediosfera. Assim, o que proponho é a partilha de algo manifestamente irrepetível: uma experiência pessoal. O relato da minha história com este filme e o que dele fui retirando ao longo dos anos. Seja este o nosso grão.
I
Não tinha mais de 15 anos quando encontrei o DVD de Apocalypse Now entre os pertences do meu irmão. O título comicamente exagerado e a cara ameaçadora gravada no disco traziam-me à memória a declaração taxativa da minha mãe (“esse é muito violento”) quando, ainda criança, pegara numa cópia idêntica, numa loja qualquer. “Adivinha quem é que já não é uma criança”, pensava com aquela infante e efémera adrenalina que torna os “filmes de crescidos” tão apetecíveis, enquanto ligava o computador. Mal podia sonhar quão eufemística se revelaria a classificação que o meu irmão me atirava do outro lado da sala (“esse início é incrível”), quando começavam a soar as primeiras notas de The End. Como, segundos depois, ao som da voz de Jim Morrison, a minha respiração se suspenderia ante a visão daquelas palmeiras envoltas em labaredas. Como daria lugar à apneia face à coreografia errática de Martin Sheen, naquele quarto de hotel. Nunca tinha visto nada assim. Ainda hoje não vi.
Depois disso, um apagão. Faltavam-me as ferramentas para interpretar, ou sequer sentir, o que o filme me oferecia. Não ficou qualquer memória da progressão narrativa, nesse primeiro encontro. Nenhum sentimento suscitado pelas imagens, exceto frustração. Disse a toda a gente que adorei – era um clássico! – e guardei para mim a vergonha de me sentir ultrapassado. Despontava aqui a ténue noção de que entrara num território diferente, onde o bom e o belo nem sempre seriam óbvios (onde talvez nem fossem alcançáveis). Foi um abalo, um ponto de viragem. E nesta primeira lição que o cinema me ensinou brilhava, sem eu o saber, a centelha de uma futura cinefilia, pois que, contrariamente a tantas outras situações na minha vida, a frustração espicaçara-me, em vez de me demover. Soube logo que havia de voltar a Apocalypse Now.
II
Foi só ao terceiro visionamento que a sua gravidade me assentou como uma bigorna. As circunstâncias ajudaram. Não sei onde estava, mas sei que estava sozinho e com uma insónia. Por volta das 4h da manhã, apanhei os créditos iniciais na televisão e pensei “porque não?”. Não podendo em boa consciência recomendar esta experiência a ninguém, a verdade é que a privação de sono acabou por se revelar o estado ideal para absorver a ambiência e as texturas do filme. O entorpecimento dos sentidos operava uma espécie de sinestesia e podia jurar sentir o calor tropical em todos os tons de laranja e dourado, a humidade da selva nos verdes e um constante calafrio no breu dos planos noturnos, onde tantas vezes só se distinguia uma cara suada. A lonjura da viagem episódica, de ritmo incerto e desafiante, fez-se sentir no que pareceram dias, à medida que o céu ia clareando lá fora e espreitando para a sala pelas frestas da persiana.
Os meus olhos cansados recebiam os episódios progressivamente mais absurdos com a devida perplexidade de quem duvida se sonha acordado ou caminha dormindo. Pesaram-me a exaustão e a tristeza que se faziam sentir em cenas como a do reencontro com as modelos da Playboy – onde, num lamaçal regado a chuva forte, os (nunca antes tão) jovens soldados e raparigas escorregavam nos recessos mais profundos dos seus traumas, em volúpias que mal disfarçavam desesperados pedidos de ajuda – bem como a terrível solidão e loucura por detrás de cada segmento do mais negro humor alguma vez posto em tela – com as cenas de Robert Duvall à cabeça. Nestas realizações, recuperei a estranheza que sentira com outra obra – Se Isto é um Homem, de Primo Levi – e ambas se abriram para mim, numa máxima clara: também o horror precisa de ser aprendido.
À semelhança do que me acontecera com o relato da vivência de Levi num campo de concentração nazi – parcamente adjetivado ou floreado, factual – levara tempo a apreender corretamente a violência de Apocalypse Now. A desligar o chip que, até ali (e numa vida largamente desprovida de perigo), me ditava que uma representação de violência correspondia apenas à exibição direta e moralizada de alguém (mau ou forte) a infligir dor a outrem (bom ou fraco). No filme, como no livro, há uma contenção classificativa, isto é: o cuidado de não guiar a perspetiva do recetor, de o deixar povoar a violência por si próprio e, assim, sentir o horror sozinho, sem ajudas. A par disso, desenha-se, em ambos os casos, a noção de que a violência mais óbvia – a do homem pelo homem – pode estar contaminada por uma muito superior, vastamente mais abstrata e poderosa, relacionada com atributos humanos, mas independente deles.
Considero, e julgo que sem exagero, que nesta confluência de epifanias se rompeu uma parte da minha primeira pele (de espectador e de ser humano). Ainda com uma compreensão rudimentar, comecei a enxergar que, dadas as circunstâncias, qualquer um de nós pode ser reduzido a um estado de menoridade, que isso é independente do que somos (ou sentimos que somos) e que pode acontecer a qualquer momento. Um rude golpe, que não mais me deixou voltar a Apocalypse Now sem uma certa dose de respeito e precaução.
III
Um ou dois visionamentos separam esta experiência transformadora do dia em que voltei ao Vietname de Coppola para escrever estas palavras. Foi neste lapso temporal que me inteirei de todas as questões sobre as quais prometi não discorrer neste texto, e que a minha cinefilia adquiriu contornos mais académicos. Preocupava-me, por isso, a possibilidade de um contacto mais frio, não só por agora conhecer o enredo praticamente de cor, mas também pela certeza de que os meus olhos iriam pousar muito mais em aspetos técnicos. Os receios, felizmente, revelaram-se manifestamente infundados. O olhar intelectualizado não roubou espaço ao coração. Levou-me, pelo contrário, a vislumbrar, na forma, outros matizes para os encantos de um filme que continua a renovar-se a cada encontro.
Em consonância com os restantes trabalhos da década gloriosa de Coppola, Apocalypse Now está ancorado numa forma clássica, elegante, cuidada. Podemos facilmente discernir uma introdução – a apresentação de Willard e da missão que recebe – um desenvolvimento – toda a viagem de barco e sucessivas paragens – e uma conclusão – a chegada ao covil de Kurtz e o cumprimento do destino de Willard. Em cada composição há proporções equilibradas, economia perfeita de informação na disposição de elementos visuais, planos-pormenor sugestivos sem serem óbvios. Há uma montagem criativa, mas sempre lógica na passagem de uma cena para outra, décors imersivos, criados de raiz… Há, enfim, o trabalho de alguém que estudou e amou os velhos mestres. E é dentro deste dispositivo técnico plenamente controlado e rigoroso que a dança macabra de cada episódio filmado atinge todo o seu potencial. É no encontro entre a forma apolínea e o conteúdo dionisíaco que se sente a grandeza do filme.
De forma mais ou menos subtil, toda a narrativa se rege por este paradoxo altamente proveitoso, que atinge o ápice, quanto a mim, na sequência wagneriana do esquadrão de helicópteros. O gesto técnico – planos captados no ar, montados para maximizar o espetáculo dos bombardeamentos americanos em coreografias altamente organizadas, ao som da Cavalgada das Valquírias – rima com o momento diegético – em que toda a selvajaria decorre, para além da música, ao som de comunicados informais, mas burocráticos e robóticos, entre soldados. É o exemplo mais paradigmático de uma jornada onde cada episódio vai sedimentando um enorme circo de bestialidades, que desafia géneros e ao qual a nossa imaginação pouco pode acrescentar.
Não quero com isto dizer que o filme se fecha em si mesmo. Aliás, apesar da sua difícil categorização, não pude deixar de sentir, como nunca antes, que Apocalypse Now se aproxima mais do film noir do que do standardizado “filme de guerra”. E se inicialmente esse cruzamento me pareceu uma mera curiosidade estilística, com o passar dos dias foi-me caindo cada vez mais como uma grande pedrada no charco. Uma abordagem de guião que, propositadamente ou não, lança luz sobre toda a história de um género cinematográfico, e onde o desenvolvimento do protagonista é a chave.
A escolha de desenhar a personagem de Willard segundo o arquétipo do detetive noir – homem destroçado, cínico e solitário que engole a sua humanidade para resolver o caso que o afogará num abismo cósmico-psicológico – e de colocar a sua investigação num cenário de guerra – onde presenciamos, com ele, todos os horrores que o levam a ensandecer – traz ao manifesto o que, durante anos só pudéramos intuir no paratexto. Subitamente, pintam-se os passados e as entranhas de todos os protagonistas de um género que nasceu e cresceu em contexto de Segunda Guerra Mundial. Enchem-se de significado os apartamentos decrépitos de solteirão, o abuso de álcool, o cinismo e a misantropia, os temperamentos violentos e os indícios de débeis saúdes mentais, envoltos em nevoeiros de corrupção moral generalizada. Apocalypse Now transfere definitivamente para a tela a realidade que os black & whites dos anos 40 e 50 só evocavam por omissão.
Aqui, e ao contrário da maioria dos filmes de guerra – onde o horror é configurado à distância, em demonstrações de violência mais concreta e física – somos atirados para o meio de um punhado de soldados com os quais passamos muito tempo. Não só assistimos ao seu processo de degradação mental, como somos quase convidados a partilhá-lo. Ver o filme sob este prisma adicionou-lhe uma tremenda camada de melancolia. E a ideia de menoridade, que mencionava no relato daquele visionamento madrugador, tornou a assaltar-me. Notei, em vários momentos, que a loucura exibida se codifica num regresso à infância: a birra de Chef, em pânico, depois de fugir de um tigre; as pinturas faciais e disposição corporal de Lance, no encontro sexual com a playmate; a obsessão do Tenente-Coronel Kilgore por surf; o choro convulsivo e desesperado de Phillips (o comandante do barco), aquando da morte de Clean; o comportamento do fotojornalista de Dennis Hopper, ora deslumbrado, ora assustado com a figura paternal de Kurtz… Já não eram soldados ou sequer homens que via, mas crianças perdidas num inferno consumado. Tantos visionamentos depois, a mágoa engoliu-me e não contive as lágrimas.
IV
À medida que o filme se aproximava do final, depois daquela exuberante sequência de morte ritualizada, apercebi-me que não me lembrava de como terminava. E que sempre fora assim, a cada revisita. Esforcei-me duplamente para reter cada momento que se segue à última investida de Willard: a queda de Kurtz, um novo ídolo no templo, a caminhada entre os “fiéis”, o caminho para o barco e… Nada. Ele parte no barco, entram os créditos. Não há fim. Última e biliosa estocada de pessimismo.
Diz-nos Dante que o Inferno é circular, e assim é a jornada do protagonista. É no limbo (ou, se quisermos, no primeiro círculo), que o encontramos. Naquele quarto de Saigão, onde os horrores já vividos lhe descascam o corpo e o espírito. Ali, onde ele já sabe que voltar a casa, à família, ao casamento, é impossível. Tudo o que lhe resta é aguardar mais uma missão, mais uma volta ao lugar de onde já não espera sair. Para a cumprir, observa ou participa ativamente em todos os pecados concebíveis. Fecha o círculo de uma viagem interminável. A morte anunciada do soldado, a cada partida para o combate, é então consumada como a morte da sua humanidade. Não é um homem, mas uma alma penada que vemos regressar ao barco. Para sempre fadada a vaguear em círculos.
Talvez seja essa circularidade que me faz voltar a Apocalypse Now. A certeza de que o final, que tacitamente acordo esquecer, será sempre o princípio de uma nova viagem. À semelhança de Willard, também parti para este visionamento com uma missão: escrever este texto. Mas enquanto via o barco partir naquele rio Nung feito Estige, soube-me condenado a regressar, mais dia menos dia, às paragens infernais onde sempre descubro algo diferente.