You recall a girl that’s been in nearly every song
This is what I heard, of course, the story could be wrong
She’s the one, I’ve been told
Now, she’s wearing a band of gold
Peggy Sue got married not long ago
Há no imaginário norte-americano mainstream uma insistência em recordar os fifties como uma montra imaculada, repleta de brinquedos e relíquias ofuscantes que vão dos carros em forma de banheira aos gritinhos no drive-in aquando de uma sessão mais peculiar. À boleia das canções de Buddy Holly, “Peggy Sue Got Married” não esquece os degraus do liceu cristalinos como a celesta em “Everyday”, os adolescentes folgazões na linha do piano em “Think it Over”, ou ainda as piruetas dos primeiros encontros em que a timidez sintonizada com os soluços de “Rave On” desabrochava atrevida com o riff inicial de “That’ll Be the day”.
Porém, Holly apenas dá o mote, depois desaparece. Também Little Richard e Roy Orbison estão ausentes. Estamos, portanto, perante um filme em que figuram as palavras e a música (Dion & The Belmonds, The Champs, The Diamonds) que o tempo engoliu e tratou de esquecer. Ao desmaiar numa reunião de liceu, a quarentona Peggy Sue (Kathleen Turner) desperta no corpo dos seus dezoito anos. Tudo familiar, tudo distante. Consciente do presente, mas participando no passado. Como diria o poeta: “Por uma viagem metafísica e carnal, com uma dualidade de eu para mim…”
Estranho cenário este em que assumimos o disfarce e, simultaneamente, vemo-lo no retrovisor. Ter uma memória de um acontecimento, observar uma fotografia do mesmo, e as duas entrarem em conflito sobre a realidade. “Peggy Sue Got Married” não é nostalgia, antes exame de consciência. Os pais, a irmã, o namorado, ou a galeria de colegas são construções na mente da adulta e na da rapariga do lado de cá do espelho inexistente para a câmara. Não exatamente em sincronia, as duas, que são uma, reparam em como uns surgem mais maquilhados e outros mais transparentes na sua artificialidade.
Não havendo relógio a cronometrar a permanência de Peggy Sue no passado, os episódios sucedem-se ora ao pequeno-almoço, ora na placidez de sábado à tarde. A luz é a mesma. A pulsação é dada pela paródia que, deliberada ou não, abraça o ridículo – o My Country, ‘Tis of thee, o modelo Edsel, o Fabian… A dada altura, Kathleen Turner observa Nicholas Cage e os seus trejeitos, a voz nasalada e irritante, ou o dentinho saído, como quem desabafa: A sério que foi com este? Bem, que seja…
Embora as caricaturas que povoem o seu quotidiano providenciem umas quantas gargalhadas, Peggy Sue procura outros vértices do tabuleiro (o poeta beatnick, o coca-bichinhos) apenas para voltar à casa de partida. Jaz aqui o conflito do filme. Toda esta retrospectiva é muito linda, que fazer face à inexorabilidade do tempo? Cairá a mesma desilusão quando a cortina da juventude extasiada for corrida. Nem o sonho de Charlie em tornar-se o próximo grande vocalista da América, nem mesmo, pasme-se, o doce conformismo das amigas que pensam o futuro em casas contíguas e churrascadas no quatro de Julho. Nada. Restam os planos gerais das bonitas vivendas no final da era Eisenhower.
Haveria muito espaço para pensar o encerrar desta ilusão. Coppola parece refém das maquetes de Dean Tavoularis, cujos belíssimos cenários estrangulam qualquer hipótese de mise-en-scène. E, indolente, o realizador não consegue atingir o patamar poético de um Leo McCarey ou de um Frank Capra, que tão orgulhosamente invoca em decalque sincero. Pense-se na fuga de Peggy com o beatnick, iluminada pelas estrelas a uma polegada de distância, e nas restantes conversas entre ambos. Ficamos no quadro do Idealismo sem a manifestação do insuportavelmente real. Tal parece incompleto, qualquer idealista assim o reconheceria. Não era James Stewart que, em It’s a Wonderful Life (filme com o qual Peggy Sue Got Married é tantas vezes comparado), virando-se para Gloria Grahame, dizia:
Let’s go out in the field and take off our shoes and walk through the grass. Then we can climb Mount Bedford, up to the falls and smell the pines, and watch the sunrise against the peaks, and… we’ll stay up there the whole night, and everybody’ll be talking and there’ll be a terrific scandal…
Para Grahame o interromper: “Walk in the grass in my bare feet? Have you gone crazy?”, e, suprema das humilhações, a câmara abrir o plano e deixar entrar o riso e escárnio da pequena multidão que assistia à cena.
Sim, Capra não tinha pejo em reduzir o maior dos heróis. Por sua vez, Coppola, não tendo a tenacidade do mestre, também nos brinda com um momento singular passado numa cave. Farto das deambulações de Peggy Sue, um furioso Charlie confronta-a, insiste que vai ser o próximo Fabian… Os olhos de Kathleen Turner, marejados de candura maternal, apercebem-se da infantilidade do marmanjo e, tristes, dissolvem para os néons do diner da cena seguinte. A viagem ao passado desagua na mesma frustração e, na mágoa provocada pela repetição, escreve-se um adágio na face da atriz – a vida prima pela insatisfação.
A réplica deste confronto, que resolve o passado e com isso o presente, naturalmente atabalhoada, surge na sequência de outro ponto alto do filme – o encontro com os avós. Mesmo que a adocicada música de John Barry afaste alguns, permanece como outra deixa sincera sobre a impossibilidade do tempo. Agora, que Peggy Sue tinha tido oportunidade de revisitar o vigor e ingenuidade da mocidade, tem de debelar emoções face àquilo que, definitivamente, não vai reencontrar no presente.
“When you and Grandma are gone, the family’s gone. I’ll never see the cousins anymore.”
“It’s your grandma’s strudel that’s kept this family together.”
Compreendendo pelo pragmatismo da velhice que nem o passado é o início, nem o futuro é o fim, os planos em Peggy Sue vão ganhando um contorno de aceitação. “Browsing through time”, o filme vai abrandando até os rostos cansados do presente firmarem por uma alegre tristeza.
Peggy Sue Got Married é a prova que os filmes sobre raparigas que aparecem em quase todas as canções também são importantes. Isto apesar de ser entendido como uma obra menor ou outro passo na década de work for hire, em que Coppola à semelhança de outros realizadores da Nova Hollywood trabalhava para sobreviver e pagar as dívidas, pense-se em Bogdanovich com “Mask” ou Scorsese com “The Color of Money”. Perdoe-se a generalização, mas talvez tenha faltado a esta geração uma forma de olhar o presente. Sem necessidade de génios (torturados) como protagonistas (constante no caso de Coppola), de construção operística, cinema despido de admiração pelo próprio antes primando pela força involuntária (ou não) das imagens. Uma geração que cresceu a amar Hawks, Ford, Hitch ou Minnelli não podia nem negar nem claudicar face ao mais pequeno ou humilde dos argumentos.
Na época do instantaneamente viral, em que o cinema norte-americano se converteu às “grandes histórias”, aos “grandes universos”, às “grandes personagens” (fictícias ou históricas), reveja-se o pequeno cosmos de Peggy Sue. Enfim, Roll Over Beethoven and tell a certain someone the news…