Dossier Francis Ford Coppola, Vol. III – Tucker (1988)

Hugo DinisOutubro 10, 2024

O homem e o seu sonho. O subtítulo não é da autoria de Coppola, mas espelha a história da sua carreira no auge da desilusão com a indústria nos anos 80. Tucker é um filme profundamente marcado pela amargura com a quebra do sonho americano e pela imposição do sistema económico ao homem visionário, o tal “little man with ideas” do seu monólogo de tribunal. Ao contar a história de Preston Tucker, um empresário do mundo automóvel que, no pós-guerra, tem o sonho de criar o carro do futuro e levá-lo às massas americanas, Coppola está sobretudo a remeter para a sua própria história.

O contexto, desde logo, não pode ser ignorado. Na ressaca do falhanço de bilheteira de One From The Heart, Coppola passou a ser visto na indústria como um activo tóxico, alguém cujo brilhantismo estava fadado a ser traído pela sua megalomania. Com o triunfo do cinema populista de Spielberg e Lucas de entre todos os movie brats da década de 70 e o Reaganismo em altas, Coppola recua para o revivalismo e dedica-se aos musicais, aos melodramas e aos filmes noir, e Tucker respira nesta atmosfera do passado. A sua produção havia começado como um musical dez anos antes, com Brando à cabeça qual Guys and Dolls, e tudo aqui representa um regresso ao passado, da banda sonora ao estilo swinging fifties de Joe Jackson à influência de Capra na relação com Arnold Shulman, que escreve o guião. A Peter Biskind, Coppola dizia que “nós tínhamos esta ideia ingénua de que seria o equipamento que nos daria os meios de produção, mas claro que aprendemos mais tarde que não era o equipamento, era o dinheiro”. O homem e seu sonho (destruído).

Coppola, tal como Tucker, revê-se nesta figura do outsider, mas os temas habituais do cinema de Coppola não sofrem qualquer compromisso aqui. Ainda que a revolta com uma indústria repressiva seja o factor dominador em Tucker, Coppola nunca descarta as ideias de família e responsabilidade. Preston Tucker é o family man americano por excelência: o seu casamento com uma mulher forte e independente retratada por Joan Allen serve de base à sua relação com os filhos, parceiros de facto no seu negócio, localizado de facto nas traseiras de sua casa.

Tucker começa com uma voz-off em estilo publicitário que dá o mote ao tom do filme. Este é um biopic que procura fundamentalmente transmitir a ideia de que criar e comunicar, fazer e publicitar, são uma e a mesma coisa. Na base deste sentimento está a cinematografia radiante e estilizada de Vittorio Storaro, naquela que foi a sua terceira e última colaboração com Coppola depois de Apocalypse Now e One From The Heart, contribuindo ainda mais para esta visão de Tucker como homem visionário, que agora Coppola parece querer retomar em Megalopolis. A lente de Coppola faz acompanhar Storaro com o recurso recorrente ao travelling e à montagem dinâmica para convocar energia e vitalidade.

Desde logo, Jeff Bridges, a ecoar um papel de optimismo permanente, assume não apenas a intenção de criar “the car of tomorrow today” como a ruptura com a indústria automóvel conforme ela existe, acusando os big three (Ford, General Motors e Chrysler) de homicídio involuntário pela falta de segurança dos seus carros. Apenas com a promessa publicitária, Tucker consegue um acordo para a entrega da maior fábrica do país com a condição de produção de 50 automóveis Tucker. Para Coppola, esta adesão ao sonho de Tucker, quase que como uma espécie de salto de fé, é intensamente pessoal. De resto, o próprio pai de Francis havia sido um dos espectadores pagantes na apresentação pública do automóvel Tin Goose em Nova Iorque em Agosto de 1947.

É aqui que o homem visionário se depara com três tipos de oposição distintos. A primeira é a de natureza política, e aqui é possível ver Tucker como um produto dos seus tempos, fundamentalmente do individualismo reaganista. A figura do político e do Estado surge como perturbação ao génio visionário do indivíduo, e Bridges é ameaçado por meias-palavras, traduzidas pelo seu fiel companheiro retratado por Martin Landau, de que “stay out of the car business, or we cut your nuggies off”.

A oposição técnica é mais prosaica, mas não menos directa. A dificuldade de construir um protótipo funcional em tempo reduzido com as especificações técnicas de Tucker (“Where is my car? What’s left of it? Anything?”, diz Bridges, não sendo difícil de imaginar Coppola a dizer algo semelhante na edição de algum dos seus filmes desta era) responde a uma barreira mais mundana, mas que nunca parece perto de deter a visão. Mas a este ponto, já o sonho deu lugar ao compromisso e a força do sonho foi substituída pela força da obsessão.

Em última análise é a oposição do sistema instalado que derrota Tucker. “You made the car too good”, diz Martin Landau. Mas ainda que a finança seja uma triste realidade para Coppola, confirmada por Landau quando este diz que “captains go down with the ship, not businessmen”, a redenção para Tucker surge nos anais da história, já póstuma, como as pinturas de Tesla e Goddard nas cenas de tribunal, inovadores do passado, agora celebrados. É este o Tucker de Coppola, o Howard Hughes de Tucker, aquele que lhe diz “who cares if it flies?”. Visionário derrotado, mas visionário.

 

Hugo Dinis