Dossier Francis Ford Coppola, Vol. II – The Conversation (1974)

Miguel AllenOutubro 8, 2024

Figura essencial da New Hollywood, e nomeadamente dessa “aventura” mal delineada que foram os movie brats, Francis Ford Coppola cedo expressara o sonho de reverter a Hollywood contemporânea às origens da sua fundação. A vontade seria de abandonar a política de “negócio” que orientava a produção do cinema americano do pós-guerra, e regressar a uma ideia e valores de uma “fábrica de cinema”, por gente do cinema. Coppola fundara a sua American Zoetrope em 1969, desviando a actividade da companhia para São Francisco, quase em jeito de afronta aos grandes estúdios. Mas por 1972, a Zoetrope estava já afundada em dívidas após a sua primeira grande aposta – THX 1138 (1971) de George Lucas.

The Conversation (1974), uma curiosa obra-prima de cinema atonal, foi “entalado” entre dois filmes monumentais, dos mais emblemáticos e populares de Coppola. Realizado entre os dois primeiros Godfather, The Conversation seria um projecto mais pessoal do autor, viabilizado afinal por essas duas “encomendas” (muito) bem sucedidas. O filme seria financiado pela The Director’s Company, uma espécie de subsidiária da Paramount (que produzira The Godfather), da qual faziam parte Peter Bogdanovich, William Friedkin, e Coppola. A companhia, fundada já nos anos 70 e de curta duração de vida (encerrada após o desaire comercial de Daisy Miller), propunha, a partir de orçamentos mais limitados, um contexto de trabalho estritamente autoral dentro do quadro dos grandes estúdios americanos. O envolvimento de Coppola no projecto teria sido viabilizado pelo compromisso seu em realizar The Godfather Part II – o que no fundo não será muito diferente do caso do primeiro The Godfather, cuja realização fora aceite por Coppola para que pudesse pagar as ditas dívidas avultadas da American Zoetrope.

No quadro da filmografia fundacional de Coppola – mais ou menos entre The Rain People (1969) e One From the Heart (1981) – não será descabido ver The Conversation como o seu exercício cinematográfico mais livre de qualquer compromisso (financeiro, criativo ou autoral). E se The Conversation partilha a escala de The Rain People – outro belíssimo filme de Coppola ocultado pelos títulos “grandes” da sua filmografia –, o realizador reencontraria esta liberdade criativa apenas nos filmes independentes tardios da sua fase digital.

 

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I’ve always been interested in technology of all kinds. About eight years ago I was having a conversation with Irvin Kershner, the director; we were talking about surveillance. He mentioned that the safest place for two people who wanted to have a conversation in private would be outside in a crowd. Then he added that he had heard of microphones that had gunsights on them that were so powerful and selective that they could, if aimed at the mouths of these people in the crowd, pick up their conversation. I thought what an odd both device and motif for a film. This image of two people walking through a crowd with their conversation being interrupted every time someone steps in front of the gunsight. From just a little curiosity like that, I began to very informally put together a couple of thoughts about it, and came to the conclusion that the film would be about the eavesdropper rather than the people.

Francis Ford Coppola, entrevistado por Marjorie Rosen in Film Comment (Jul-Aug 1974).

 

Transportando o modelo clássico do noir americano para o clima de paranóia política que se expandia pelos Estados Unidos de Nixon, nos anos 70 (em plena Guerra Fria, e em antecipação do escândalo de Watergate), The Conversation retrata Harry Caul (Gene Hackman), aclamado especialista em escutas secretas. Concluída uma missão, Caul compreende que o casal que fora contratado para espiar corre perigo de vida, e o filme documenta o dilema moral do nosso homem: paranóico e misantropo, um cristão praticante que carrega a culpa de uma missão anterior, onde “causara” o assassinato brutal de uma família.

 

A exposição de um método novo de investigação, The Conversation abre com a execução rigorosa (tanto quanto complexa e, veremos, obscura) do trabalho de Caul. Coppola concentra a trama inicial do filme no processo de escuta e sucessiva reconstrução, em estúdio, do diálogo de duas figuras anónimas, dois amantes, numa animada praça central de São Francisco.  Muito concentrado no detalhe, e de grande precisão quando aborda o detalhe material da vida das suas personagens, Coppola optaria neste filme por escolhas formais de intento “impessoal”. Como se de uma câmara de vigilância se tratasse, as imagens foram concebidas “sem operador”, insistindo numa certa desassociação do objecto final do filme para com a mão que o trabalhara. “I wanted the camera just to be dead”, e para tal, o realizador terá tido de substituir o director de fotografia original do filme, Haskell Wexler (que ainda filmou a sequência na praça), por Bill Butler, o seu colaborador em The Rain People.

Este eventual confronto entre uma “tecnologia” e a posição moral do seu executante, será tanto a fonte do vocabulário formal do filme, como um tema essencial da sua narrativa. Coppola pretende estabelecer um evidente paralelismo entre o processo de realização do seu filme (ou de um qualquer filme) com o próprio trabalho de escutas (ou “espionagem”) que aqui aborda. Uma câmara, um microfone, e o seu objecto – a intrusão que esse processo induz, e as suas necessárias implicações morais (e autorais). Concentrando-se sistematicamente sobre a figura de Hackman, The Conversation segue o “enredo” interior do seu Harry Caul – uma meditação singularmente transporta para a tela a partir dos elementos sonoros e visuais, constituintes do seu próprio trabalho – e é essa sua voz, muito para além do ofício da personagem, ou da “verdade” por detrás das suas acções, que constitui o motivo central do filme.

I don’t have anything personal, nothing of value.

Com Der Steppenwolf (Hermann Hesse, 1927) como modelo, Harry Caul é um estranho à sua sociedade. Uma figura solitária em nuances de cinzento que se funde, introspectivo, na multidão anónima. O lamento do seu saxofone, ou o grito lancinante de uma morte, contra o profuso bruitage urbano e tecnológico. O silêncio de Hackman e a sombra melancólica daqueles espaços nocturnos, que ecoam o isolamento da pintura de Hopper. Se até certo ponto “a job [is] not supposed to mean something”, Caul acaba por assumir a responsabilidade pessoal de quem é, de facto, parte integrante de um processo. E é o fardo dessa consciência que ditará a, afinal, falta de clareza do seu juízo e, nisso, o desolador desenlace do filme. Envolvido, também ele, numa relação “secreta”, Caul projecta-se naqueles dois amantes sob a sua “objectiva” (com aquela indecifrável imagem recorrente do seu beijo velado), e assume o novo “dever”, seu, de travar o processo que considera ter viabilizado. Da paranóia e de um medo, contemporâneo – o medo “do outro”, com o medo de magoar o outro.

 

O prestigioso trabalho de sonoplastia de Walter Murch compõe os espaços do filme tanto do ruído processual do trabalho retratado, como dessa dita “introspeção” de Caul. E seguindo a sua personagem, pela sua progressiva obsessão por um objecto, The Conversation revela-se uma tela ideal para experimentações formais e narrativas tiradas das “novas vagas”, que Coppola pretendia introduzir no cinema popular americano. Um exemplo notório, o soberbo plano de abertura, com um rigoroso e lento, mecânico (e nisso impessoal), zoom sobre uma praça pública e seus transeuntes e, eventualmente, uma aproximação em plongée sobre a figura anónima de Hackman.

 

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Coppola sempre falou abertamente do seu intento, aqui, “to imitate Antonioni” (razão da refuta do filme por William Friedkin, seu colega na The Director’s Company). E como o seria, com maior evidência, One From the Heart, The Conversation é um filme americano informado pelo novo cinema europeu – por si, inspirado, claro, pelo cinema clássico americano. O filme integra um grupo de, pelo menos, três filmes “essenciais”, mais ou menos contemporâneos, realizados a partir de uma releitura (não sendo nisso verdadeiros remakes) de Blow Up (1966) – os outros dois sendo Profondo Rosso (1975), de Dario Argento, e, uns anos mais tarde, Blow Out (1981) de Brian De Palma.

Se em The Conversation, Antonioni é a referência recorrente (e nisso pela sua obra completa de 1960 a 1970), o filme acorre também, através do seu thriller, à lente de Hitchcock – uma referência que curiosamente partilha com os filmes de Argento e de De Palma. O filme discorre, de facto, num fortuito encontro entre L’Eclisse (1962) com a intriga e paranóia (mas menos humor) de North By Northwest (1959), ou os silêncios de suspeita de The Wrong Man (1957). Mas claro que, nas suas “ausências” e na materialidade da suas imagens, nas paisagens urbanas e no seu relativo ennui, o cineasta italiano surge aqui um pouco por todo o filme. As arquitecturas modernas de La Notte (1961) ou L’Eclisse, o uso da cor e os sons electrónicos — e, claro, aquela gabardina de Hackman — próximos de Il Deserto Rosso (1964). E à swinging London do fotógrafo inglês, sucede aqui uma solarenga San Francisco, em vésperas de festas, carregada, claro, do cinzento deste seu protagonista.

 

Diálogos paralelos, é também na reflexão que The Conversation opera sobre os limites da nossa percepção, que o filme se refere a Blow Up. Thomas (David Hemmings) amplia sistematicamente a sua fotografia (o titular blow up) para poder chegar “mais perto” do seu objecto, mas ao fazê-lo intensifica o grão da imagem, que assim se torna progressivamente menos nítida, e nisso, mais abstracta. Pelo contrário, em The Conversation, será a clareza no som do trabalho de Caul, o verdadeiro motor do seu erro de juízo. Também pela dita influência de Hitchcock, a linguagem do filme de Coppola será informada por ideias progressivamente mais concretas – e um discurso mais abertamente político, próprio ao seu tempo e contexto.

– I thought you were supposed to be in Paris.

– I am in Paris!

Em Blow Up, a “conversa” será assim de relativo absurdo, quiçá irrelevância, nas acções do seu protagonista. Por outro lado, a reflexão de Antonioni em torno de uma projeção sentimental nossa sobre um determinado objecto – potenciado naquela cena final, com os mimos, que é relembrada na abertura de The Conversation – forma, enfim, o subtexto do filme de Coppola, com os referidos dois romances secretos, paralelos, de Caul. De referir que Argento tentará exponenciar o dito absurdo de Blow Up ao transpô-lo para um contexto mais próximo do horror, sem lhe extrair o “mistério”, mas conferindo-lhe valores mais iconográficos. Quanto a Blow Out, essa grande obra em torno das nossas derrotas sociais, o absurdo será já integralmente politizado, enquanto lugar próprio a uma sociedade intrinsecamente corrupta.

A partir da complexa matriz do filme “original” de Antonioni, os três filmes constroem, entre si, um interessante diálogo triangular. E não deixa de ser curioso que os três autores se tenham apoiado em referências semelhantes para prolongarem, em faux-noir, a reflexão de Blow Up. Existe, é evidente, um contorno mais “concreto” nos dois filmes americanos – ambos contam uma liberdade sabotada pela representação social. Por outro lado, De Palma e Argento aproximam-se pelo ambiente mais perverso (de fundo cinematográfico mais popular) em que aprisionam as suas personagens. Ao rimar mais fielmente com o ambiente de Blow Up, The Conversation situa-se, enfim, entre dois polos — um falso filme europeu ou um quase filme americano.

 

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Necessariamente insatisfatório na sua busca, mas “since when are you here to be entertained ?” A monotonia quase enigmática dos seus espaços contemporâneos, a interrogação discreta na figura de Harry Caul. Pela atonalidade das experiências sonoras de Murch, um singular objecto perfeito composto de peças dissonantes. Aborrecido, seguindo aquele piano que quase nos embala, depois triste ou inquietante, até dois fortes “sustos”, seguidos de um martelar agressivo.

Um filme profundamente marcado pelo “seu tempo”, mas cuja paranóia encontra ecos evidentes na nossa realidade de hoje. A última cena será uma inquietante imagem da solidão de um homem na sociedade pós-moderna. Com uma quase implosão da antológica sequência final de Zabriskie Point (1970), Harry Caul tentará, desesperado, reencontrar um abrigo a partir da destruição da sua própria vida material. O piano, e depois o saxofone. Os espaços que se esvaziam perante aquela “ausência” da câmara. E a figura desarmante de Hackman, feito Winston de Orwell, no canto do seu apartamento.

 

Miguel Allen