Dossier Denis Villeneuve, Vol. IV – Enemy

Miguel AllenAbril 1, 2024

Enemy, o segundo filme de Denis Villeneuve em 2013, foi, na verdade, realizado antes de Prisoners, mas veria a sua estreia adiada em prol da produção mais importante que fora esse outro filme. Um projecto mais pequeno (de resultados de bilheteira terrivelmente mais modestos), Enemy é novamente protagonizado por Jake Gyllenhall, aqui por duas vezes, e evidencia também uma forte influência fincheriana. Se Prisoners se aproxima de Zodiac, este será um Fight Club mais refreado, numa fábula labiríntica sobre introspecção masculina nos “não-lugares” da sociedade ocidental contemporânea. 

Com argumento de Javier Gullón, uma adaptação livre mas prudente de O Homem Duplicado, de José Saramago. A narrativa de Enemy é estruturada a partir das peças e eventos principais do livro, acabando por orientá-los num sentido consideravelmente mais “acessível”, tanto menos material quanto menos metafísico do que no texto original, e isto apesar do interessante enigma que assume o centro do filme. Monotonia, desconforto, e repetição, filmar uma náusea urbana, com imagens carregadas do mais enjoativo amarelo pálido, que sufoca os planos de exteriores de um odor repugnante que não saberemos identificar. 

Espaços desprovidos de cores, lugares desprovidos de vida. Enemy é o filme “aborrecido” de Villeneuve – e nisso um exercício competente que não evidencia, porém, claros traços autorais. A história de um homem que se vê duplicado num “outro” que em tudo lhe é ele próprio. Uma narrativa linear, que se desdobra de forma circular, ou fragmentada. O filme revela-se enquanto estudo de uma “culpa” (essa histórica culpa de um homem…), pelos estilhaços da percepção humana. Imagens de reflexos, uma cidade enquanto duplo moral do duplo protagonista, e uma mulher-aranha que tece uma castradora teia sobre os seus espaços urbanos. 

Num filme que vive do enigma que apresenta ao espectador, as opções narrativas de Villeneuve desviam a história do absurdo kafkiano de Saramago – de um livro onde interessa o valor da identidade – para a assentar na mais prosaica banalidade contemporânea – de um filme em torno do adultério. E se Enemy abre com o aforismo que Saramago “inventou” para a contra-capa do seu livro (“o caos é uma ordem por decifrar”, do Livro dos Contrários), parecer-nos-ia talvez mais justo se Villeneuve tivesse optado por uma outra máxima popular, mais badalada, como “denial isn’t just a river in Egypt”. Isto porque, mesmo se marienbadiano (se quisermos), Enemy não é um filme sobre “um caos”. Antes a exposição, de uma forma misteriosa e retraída, de uma imagem inevitavelmente trivial. E que curioso que essa inflexão moral de uma fábula kafkiana seja aqui imposta pela kafkiana imagem da “aranha”, que Villeneuve e Gullón acrescentaram à história original*.

Sliding Doors**, a identidade do indivíduo defronte do seu percurso social e emocional. Filmar uma não-existência, preenchida de não-relações. No lugar de um “homem duplicado” surge aqui um “inimigo” – a uma presença material paradoxalmente exterior, Villeneuve atribui um sentido puramente individual e psicológico. Adam e Anthony, numa mesma fotografia de um Passado que lhes é factualmente comum. Enfim, um filme sobre “verdades” que nos assombram porque delas desviámos os olhos. Sobre um eu que talvez não queiramos que exista – “if only I could turn back time, I would stay for the night”.

Se Villeneuve é hoje o realizador do Titanic dos anos 2020, este Enemy é ainda o filme de um “outro” autor. E se o díptico de Dune é um evento que nos parece mais adequado experimentar do que discutir, Enemy arrisca-se mesmo a funcionar de forma contrária. Um filme, qual jogo mental, que será inevitavelmente mais interessante discutir do que presenciar.

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* será de notar que os actores do filme assinaram uma cláusula de confidencialidade quanto ao significado das aranhas no filme !
** esse clássico esquecido de 1998, realizado por Peter Howett

Miguel Allen