Incendies, quarta longa-metragem de Denis Villeneuve (e última das suas produções canadianas), é uma experiência visual marcante. As imagens de paisagens ardentes, natureza inóspita, betão quebrado e metal retorcido têm a beleza e o poder do horror. Carregam o peso poético de uma sensação de devastação total, para o qual muito contribui uma paleta de cores com tonalidades baças, que encontramos em planos de cidades e de paisagens naturais, na escuridão de interiores austeros e em todas as representações de atrocidades. Uma poeira – por vezes literal, outras metafórica – que impregna toda a imagética, contrastando fortemente com as esporádicas (e, por isso, mais intensas) aparições de fogo. Um forte complemento para uma história de vidas definidas pela violência bélica.
Esta intensa voz estética será mesmo a grande força de um filme que limita o conflito a isso mesmo: uma estética. Um pano de fundo (um pretexto) para o mistério familiar que está verdadeiramente interessado em contar e desvendar. As pistas e revelações que Villeneuve tece numa narrativa não-linear servem quase exclusivamente o aspeto mais processual do argumento (o enredo) e as sensações que este pode suscitar no espectador. O objetivo principal é o de espantar pelo choque e unir com um laço as linhas narrativas que, inicialmente, separam três vértices: o passado de uma mãe, num país assolado por tensões religiosas e guerra civil; a busca pelo seu filho perdido, nesse contexto; e o presente dos gémeos órfãos – que só conheceram a vida pós-emigração -, incumbidos, pelo testamento da mãe, de descobrir a identidade do pai e o paradeiro de um irmão cuja existência desconheciam. A este objetivo, o filme sacrifica muita da complexidade – temática, humana ou filosófica – para a qual a sua forma parece apontar.
Fosse este um filme de assumido entretenimento puro e a sua superficialidade estrutural não se poria em questão ou seria, pelo menos, atenuada. Tivessem as personagens mais profundidade e talvez fizesse sentido elidir especificidades do cenário de guerra, em favor de uma narrativa humana sobre os efeitos da violência nos indivíduos. Nem uma coisa nem outra se verificam. Por um lado, há uma pretensão constante de “realismo” – traduzida em escolhas como a filmagem no local, a recriação fiel de escombros de bombardeamento e o emprego de planos imersivos (como aqueles subjetivos da mira de um sniper) – que emula a gramática do documentário, ou da reportagem de guerra. Neste enquadramento, vemos várias pessoas a serem baleadas (incluindo crianças), torturas e violações são amplamente mencionadas… tudo sem um real motivo que não o de servir o enredo e o seu twist final. Por outro lado, as personagens em si são meros veículos desse perpétuo movimento narrativo, que vai de A a B sem parar em qualquer apeadeiro reflexivo. A mãe só tem agência na medida do seu sofrimento, pois é ele que vai servir a ideia final de que o amor pode sobreviver mesmo depois do maior dos horrores, ultrapassando o ódio. Os gémeos existem para descobrir os factos, que lhes são expostos em conversa, ao mesmo tempo que o espectador. Entre si, servem esse mesmo propósito: facilitam o pensamento um do outro, em voz alta, e, desse modo, a exposição ao espectador. Se a estas duas características juntarmos ainda o cenário escolhido e a forma como o conflito em si é tratado, a ausência de complexidade deixa de ser uma simples comichão para se tornar num incómodo moral.
A viagem de descoberta dos irmãos tem lugar num país inominado do Médio Oriente. As histórias, costumes e cultura dos nativos que encontram são notoriamente ignoradas do léxico visual e abafadas narrativamente (nomeadamente, através da escolha de não legendar os diálogos em árabe). Se a vontade de relevar o choque cultural sentido pelos irmãos num lugar estranho estivesse verdadeiramente em causa, haveria problemas decorrentes da dificuldade de comunicação, “tropeções” em episódios complementares da vida local, que pudessem ajudar a pintar melhor os fatores causais (geopolíticos, culturais, religiosos) daquele conflito, ou a tecer alguma consideração conceptual sobre a guerra. Não é o caso, porque, ainda que se sirva da sintaxe da guerra, o filme não está particularmente interessado em pensá-la. Cada pessoa encontrada, cada nova peça de informação sobre o conflito serve apenas como dispositivo para avançar a caça à pista dos irmãos (e do espectador).
O Médio Oriente é reduzido a uma estética para uma narrativa. Há um conflito religioso no coração deste cenário, mas as causas são desconhecidas e os nomes das fações (uns genéricos Nacionalistas e Rebeldes) intercambiáveis. Seguindo esta lógica, pode pegar-se na Guerra Civil do Líbano, na qual a do filme é baseada, e colocá-la em qualquer ponto do Médio Oriente, porque para esta narrativa tanto faz, a região é toda igual, o contexto não importa. O mundo de Incendies é um de guerra perpétua, no lugar que qualifica como o da guerra perpétua. É o tipo de visão reducionista e simplista que se contenta com argumentos que apontam a religião como a única causa de conflitos armados, que colocam todos os conflitos em pé de igualdade, ignorando as especificidades de cada um, e que declaram sentenciosamente a permanência e inevitabilidade da guerra em certas áreas “amaldiçoadas” do globo.
Naturalmente, estes incómodos não serão partilhados por todos os espectadores e certamente haverá muito a absorver para quem se focar no nível mais visceral de Incendies. O peso das imagens, a inegável competência técnica e o conforto da lógica policial do enredo – cruzado com o (agradável) desconforto dos acontecimentos retratados, que confluem e culminam num doloroso golpe final – terão, pelo menos, o mérito de não deixar ninguém indiferente ou aborrecido. A ideia de inevitabilidade da tragédia, ainda que preocupante neste contexto, é o que ata a ligação entre passado e presente, e confere emoção quer à viagem em que a mãe envia os filhos, quer às suas agridoces palavras finais, em carta. É uma pena que o elemento determinista, típico da tragédia grega, não seja construído de forma convincente (há demasiados acasos mal ligados para que resulte em pleno) e que seja desperdiçado potencial narrativo noutras frentes – como o facto ignorado da mãe ter estudado línguas e a filha matemática – de onde poderiam resultar visões de mundo distintas, capazes de engrandecer as personagens, e a obra como um todo. Ficam, enfim, as texturas e os tons na retina, nas entranhas as imagens de desolação em composições imaculadas e no coração as cartas de uma mulher – de ódio a um mundo de algozes, de amor aos seus filhos.