Da Ficção Histórica ao Revisionismo Histórico

Fairytale – Sombras do Velho Mundo (2022), de Alexandr Sokurov, tem uma premissa quase cómica: Churchill, Estaline, Hitler e Mussolini “entram num bar” – porém, tal como no título dum recente artigo de opinião de António Bernardo Colaço, “guerra não é comédia”. Estes estão, pois, não num bar, mas numa espécie de purgatório. Escreve-se espécie, porque Jesus Cristo com eles lá está, o que indicaria, das três, uma: ora equívoco do pai, ora do filho, ora que leituras religiosas deste espaço (ou não-espaço) são desadequadas. Em tempos já tumultuosos o suficiente para a Igreja Católica, a adopção da terceira hipótese afigura-se o mais diplomático.

Através dum surpreendente e cativante uso da tecnologia, movimento é digitalmente impresso em imagens de arquivo das figuras históricas, que assim deambulam e dialogam em paisagens que trazem à memória a pintura do século XIX, representações surreais do além, num encontro do visto com o nunca visto de resultados singulares.

Vagueando por espaços desérticos ou de construções imponentes, as figuras vão trocando comentários de variável seriedade, entre comentários sobre indumentária, relatos de memórias e críticas políticas, num crescendo de vergonha alheia que acompanha relativização destas críticas (assim normalizando-as) pelo acumular de declarações de afinidade, como por exemplo quando Mussolini repetidamente refere a Estaline o mito segundo o qual Lénine o teria elogiado, ou Hitler lamenta desentendimentos com Churchill. O contexto onírico, a final de contas, reflecte bem a contradição no seio do filme e que tanto o fragiliza: sem contexto, efectivamente sem História, não existem figuras históricas, antes imagens cuja significância real é traída, falsificada e branqueada pelo jogo de sombras ao serviço da qual elas são postas. Conquanto as imagens de Churchill, Estaline, Hitler ou Mussolini tenham valor ou significado na actualidade, este não se deve à sua mera conservação no plano das ideias, mas pelo impacto real (histórico) que estes tiveram, por via das massas que os eternizaram.

Fairytale – Sombras do Velho Mundo (2022), de Alexandr Sokurov

De facto, não há, ao longo de Fairytale, qualquer referência ou descrição de eventos históricos – algo que não se estranha, porquanto estes, dizendo mais do que mil imagens do filme, não servem a sua narrativa. A diferença que existe entre o Holocausto e a libertação de Auschwitz é a diferença que se diz não existir entre Hitler e Estaline; a professa militância ateísta de Mussolini não se coaduna com as benesses que o seu regime concedeu à Igreja Católica, tal como o suposto humanismo de Churchill choca com as suas visões profundamente racistas.

Aqui, a ficção histórica é na realidade um exercício de revisionismo histórico, parte do regime que vai mantendo instituições decadentes em forma.

Um outro filme recente retrata bem a confusão histórico-ideológica que vai animando o actual ambiente cultural na Europa, Potemkinistii (2022), de Radu Jude. Nele, um artista pretende adaptar um monumento para que homenageie os marinheiros que conduziram uma revolta contra o Czar russo, tendo, na sequência dos eventos, a monarquia romena lhes concedido asilo político – trata-se do mesmo grupo que inspirou o histórico filme de Serguei Eisenstein, O Couraçado Potemkin (1925), algo que suscita inquietação na sua interlocutora, que representa o Ministério da Cultura romeno. De modo a tornar o seu projecto mais apetecível, o artista serve-se de um extenso arsenal de caricaturas, simplificações e deturpações. A concessão de asilo aos marinhos da parte de Carlos I havia consistido num grande momento de oposição à Rússia e de afirmação da Roménia – “O nosso rei!”, exclama a burocrata, provavelmente esquecendo que de romeno este nada tinha, tendo chegado à coroa por recomendação de Napoleão III. Os argumentos vão assentando na lógica de tratamento da Rússia czarista, a URSS e o moderno estado russo como uma mesma entidade e os marinheiros, tal como Eisenstein e até o próprio Lénine, não podem ser vistos como comunistas, mas sim como “idealistas” – tudo para poder elogiar aqueles que se revoltam contra o Czar ao mesmo tempo que se eleva um outro monarca. Confuso e estonteante, embora nada fora do comum – é precisamente este tipo de falácias que tem presença assídua na comunicação social.

A representante ministerial, por sua parte, traduz na perfeição a postura da burocracia europeia no que toca a estas questões, repetindo os seus lugares-comuns: a Rússia é má, porque o comunismo é mau, até mesmo quando é bom. E assinala, tal como o Parlamento Europeu o fez há alguns anos – pondo a nu o propósito que serve todo este malabarismo – que, afinal de contas, nazismo e comunismo são igualmente maus, duas faces da mesma moeda.

Eventualmente, os dois chegam a um consenso: uma colagem pós-moderna de um memorial às vítimas do comunismo, uma homenagem a Eisenstein e aos marinheiros do Couraçado Potemkin que lutaram contra o Czar. “O Século XX foi uma misturada, de qualquer das formas”, diz o artista.

Potemkinistii (2022), de Radu Jude

Nesta óptica, se algo não é inteiramente bom ou inteiramente mau, torna-se impossível dar-lhe sentido. Sem uma compreensão dialéctica da História, não existe compreensão da História. O artista relembra que o monumento sobre o qual discutem costumava ter uma inscrição: “Para que futuras gerações não esqueçam o nosso sacrifício”. Fatalmente, futuras gerações roubaram essa inscrição para a vender, donde a necessidade de, o que quer que se faça, fazê-lo grande ser um imperativo – caso contrário, manifestantes do movimento “Black Lives Matter” podem deitá-lo abaixo. De facto, esta visão maniqueísta da História como um embate entre “bons” e “maus” está a fazer ricochete contra os seus ideólogos: os mesmos que celebram o pulular de demolições de estátuas soviéticas na Ucrânia, em particular uma simbolizando a amizade entre os povos russo e ucraniano, insurgem-se contra quem deita abaixo estátuas de figuras ligadas ao colonialismo na Europa ou o esclavagismo nos EUA. Porém, pouco importa. Tanto uns como outros o que deitam abaixo na verdade é a própria noção de História. É evidente que o edificado monumental e toponímia vão mutando com o tempo, mas estas mutações não conseguem apagar o passado e por isso não podem ser feitas com esse intuito.

Esta curta-metragem, na sua imagem inicial e logo abaixo do título, deixa-nos a nota de que foi filmada em Junho de 2021. Para lá de esclarecer o porquê de o artista dizer a certo ponto que “agora toda a gente anda a chupar a pila ao Putin” num momento marcado pela ilegal censura de meios de comunicação russos na União Europeia, o cancelamento de atletas e artistas russos e a exclusão da Federação Russa de vários eventos internacionais (com destaque para as comemorações do 78º aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz), esta informação demonstra como todo este processo de revisionismo histórico em muito antecede a entrada da Rússia na guerra da Ucrânia e nada tem que ver com ela, tendo como finalidade derradeira a reabilitação do fascismo.

No caso de Potemkinistii, as intenções do realizador são também elas obscurecidas pela nébula ideológica, política e estética que o filme engendra – algo que contribui para a singularidade inquietante da obra. Já em Fairytale, uma cena perto do final expõe com claridade a tese de Sokurov.

Hitler, Estaline, Mussolini e Churchill (embora este mais tarde discretamente se ausente) acorrem a uma plataforma que contorna um campo gigantesco que cedo se preenche com um verdadeiro oceano de gente. As figuras históricas deleitam-se, cada uma, com as multidões que lhes chegam, no momento de maior inventividade e clímax visual de todo o filme. Passados alguns minutos, todavia, a maré recua, deixando de novo o extenso campo vazio, devolvendo os protagonistas ao seu ócio. A derradeira estacada na dialéctica histórica – e com ela, em qualquer semblante de ideia de progresso – é a farsa da repetição da História, que assim remete para o campo da normalidade a reiteração da barbárie, favorecendo análises simplistas, em detrimento da observação das condições e variáveis únicas que proporcionaram cada desenvolvimento histórico e todas as suas particularidades e contradições. Em adição, o fatalismo que assim se imprime tem como útil consequência o derrotismo de muitos dos que poderiam – e podem – ter algo a dizer sobre isso.

Diogo Vale