Vencedor do Grande Prémio do Júri no 81º Festival Internacional de Cinema de Veneza, e designado como a entrada italiana para Melhor Longa-Metragem Internacional na 97ª edição dos Óscares, Vermiglio consagra Maura Delpero como uma das mais relevantes realizadoras italianas da sua geração. Escrito, co-produzido e realizado pela cineasta, o filme tem sido apontado pela crítica mundial como uma obra de maturidade e beleza singular. Com o seu décor montanhoso, cinematografia cuidada e drama contido, tem todos os ingredientes para cativar o público europeu que acompanha o circuito dos festivais de cinema. Vejamos o que dizem as críticas de dois tribunos.
Sinopse: Pietro, um soldado desertor, chega a Vermiglio em 1944, e apaixona-se por Lucia, a filha mais velha do docente da aldeia, desencadeando consequências inesperadas. Durante as quatro estaçoes que marcam o fim da Segunda Grande Guerra, o mundo ressurge da tragédia, enquanto uma família enfrenta a própria ruína.
Maura Delpero revela uma grande sensibilidade e subtileza na sua segunda longa-metragem, contemplando a natureza cruel e austera do norte de Itália, neste slow burn que abarca a disrupção religiosa, a ruralidade, a perda e o luto. É num vale montanhoso que reside uma numerosa família, onde pai, mãe e oito filhos convivem diariamente com uma guerra distante mas também omnipresente. Vermiglio, a remota aldeia, vê na chegada de Pietro, um desertor, alguma lufada de ar fresco e renovação. Mas a lenta acumulação de pormenores sobre as personagens compensa realmente o ritmo lento que deliberamente é atribuído à narrativa. Os desempenhos, um pouco monótonos no início, transformam-se em retratos muito mais interessantes, pormenorizados e psicologicamente detalhados desta família tão pobre como imensa. É pelo incutir na narrativa de uma série de revelações, que esta se vai tornando emocionalmente penetrante e surpreendente. Maura Delpero aborda as questões sociais da ruralidade, as relações entre pais e filhos, a devoção e a fé, numa estrutura extremamente refinada, tanto linguística como estilisticamente, por meio de um argumento coerente e homogéneo. Ocasionalmente, o zelo no tratamento dos segredos morais faz-nos lembrar A Hidden Life, de Terrence Malick, mas também The Devil’s Bath, de Severin Fiala e Veronika Franz. No fundo, Vermiglio é um drama de compasso lento, emocional mas ricamente detalhado em segredos desta família, onde cada membro parece desempenhar uma função específica: seja a do ensino, da fé, da continuidade genealógica, do trabalho no campo ou da gestão do lar. Sublinhamos a forma explícita, precisa e astuta como Maura Delpero aborda este período discriminatório e de objectificação do sexo feminino em funções laborais mais altas, assim como a impossibilidade das mesmas darem continuidade aos estudos. Como bónus, Delpero decora a cinematografia com natureza, sendo bastante contemplativa na inserção da fauna e da flora, mas sobretudo na representação visual da montanha italiana que é tão deslumbrante quanto o uso da luz natural na fotografia.
Rita Cadima de Oliveira
Um ano volvido depois do sucesso de bilheteira de C’è Ancora Domani, de Paola Cortellesi, Vermiglio, a segunda longa da italiana Maura Delpero, propõe uma nova examinação feminista italiana em torno de sociedades fechadas. Neste caso, o olhar lançado é sobretudo aos costumes da ruralidade montanhosa do norte de Itália, no contexto do final da Segunda Guerra Mundial. Aqui, Vermiglio retrata primordialmente a vida de uma família numerosa composta por dez filhos e encabeçada pelo professor local (Tommaso Ragno), uma figura que se assume pessoalmente como a bússola moral da pequena vila. A acção inicial é pontuada pelo romance entre Lucia, a filha mais velha, e Pietro, um soldado desertor, que vem abalar as dinâmicas internas da família. Ada, a filha mais dada ao culto do divino, almeja um futuro enquanto elemento da família em busca de uma educação formal, mas o seu ressentimento face a Lucia lança sobre si própria uma auto-descoberta emocional e sexual em torno de outra rapariga da vila. Muito embora grande parte das dinâmicas em Vermiglio requeiram um investimento gradual no seu enredo, o que salta logo à vista é a criação de mundo por parte de Delpero: a vila aparece-nos perdida por entre a imensidão dos vales e a opressividade da neve, numa fotografia saturadíssima de Mikhail Krichman (do trabalho de Andrey Zvyagintsev). É aqui que Vermiglio cria as suas raízes. O vale é imenso e as vidas são solitárias e desesperadas. Ada vê partir o seu interesse amoroso, Lucia fica só perante o regresso do marido à sua Sicília natal, e os homens ficam isolados perante as suas próprias inadequações. A construção narrativa de Vermiglio é pausada e, a espaços, aparenta ser algo incerta e pouco deliberada. É apenas durante a última hora que ficamos com noção real das personagens que compõem o centro da narrativa. Não obstante, Delpero parece também dedicar uma boa parte da sua construção de envolvência à relação deste povo com o obscurantismo religioso e rural do seu tempo, numa perspectiva decididamente de século XXI. O espectador é chamado a uma criação quasi-comédica que revolve essencialmente em torno da ignorância da população rural à data. Nesse sentido, muito embora seja aqui lançado um olhar fundamentalmente ligado ao papel da mulher no século XX, em especial no contexto de um meio pobre, rural e profundamente religioso, não deixa de ficar no ar uma certa desconsideração modernista pela real luta destas mulheres.
Hugo Dinis