A polarização que M. Night Shyamalan suscita não é de hoje. Se alguns enjoaram rapidamente dos seus famosos plot twists, recusando-se a reconhecer-lhe outros méritos, outros sempre viram nele as qualidades de um autor distinto. Não é previsível que esta perceção pública do cineasta se altere tão cedo (ou algum dia), mas desde Old que Shyamalan parece sentir-se confortável nessa pele. Os seus exercícios progressivamente mais abstratos, exuberantes e mais carregados de humor são o melhor dos atestados. Goste-se ou não, portanto, é garantido que um novo filme seu será sempre um acontecimento. O mais recente tem ainda o forte condimento de “ressuscitar” Josh Hartnett, cara bonita dos anos 2000 e ator de talentos que sempre pareceram ficar por cumprir. Tudo motivos de sobra para aguçar a expectativa de dois dos nossos tribunos, que foram assistir e nos deixam agora as suas críticas a Trap, de M. Night Shyamalan.
M. Night Shyamalan sai de uma cabana para um multiusos repleto de pipocas, bebidas gaseificadas e cultura pop. Um filme que grita Swifties do início ao fim. Uma geração que vê concertos através da lente do telemóvel, objecto este que se afirma como meio responsável pelo endeusamento de cantores e cantoras de um pop repisado. Mas também como meio de cativeiro dos mesmos. A isto junta-se Josh Hartnett como pai da adolescente Riley e como serial killer – Butcher – numa interpretação ao estilo welcome back onde ambas as vidas não se misturam, guardando em gavetas (mal fechadas) camadas de feições e expressões corporais. Shyamalan filma bem e retrata clichés como ninguém, mas os actores e actrizes que personificam esta realidade, em nada ajudam a tentativa de criar alguma verosimilhança com a realidade. Apesar de Trap ser um filme intrigante e tenso, tem também demasiadas linhas e caminhos mal explorados, assentando em representações genéricas e sem nexo. A narrativa torna-se artificial e pouco realista, sobretudo nos momentos em que excessivamente sublinha os adolescentes como reféns de um culto sem cara. Ou com uma demasiado postiça. Apesar de quase tudo em Trap parecer plástico, superficial e forçado, Josh Hartnett arrisca e até se empenha mas a narrativa deixa-o ficar mal, não se conseguindo afirmar. Analisado de uma prisma macro, Trap tem (quase) tudo. O distanciamento que as novas gerações têm com a realidade, a hiper ligação aos aparelhos electrónicos, o uso e abuso de alimentação fast food e das bebidas energéticas e o cativeiro dos pais e consequente submissão destes ao mundo encantado dos filhos. Analisado de uma forma micro, Trap acaba por ter acting incompatível com a sua maior pretensão, tornando a progressão narrativa desequilibrada e insuficiente. A lógica da existência de Butcher, os motivos e as razões que o levaram a tal são parcas ou inexistentes e as conexões familiares são mal exploradas. Apesar de apresentar uma premissa algo criativa e necessária, nem que seja para motivos de reflexão, é um filme divertido, mas extremamente previsível.
Rita Cadima de Oliveira
Numa época em que Taylor Swift e outras estrelas pop modernas lançam sucessos no cinema musical, com os seus concert movies como Eras Tour, o autor Shyamalan volta a criar um conceito incrivelmente original ao inserir um thriller na estética visual desses filmes concerto. Trap é uma maravilha auto-consciente de várias camadas que consegue criar a sua própria linguagem e universo, ainda evocativo do estilo pós-After Earth de Shyamalan. As interpretações são arrojadas e divertidas (alguns dirão que são apenas más, mas não será a interpretação a concretização da visão de um realizador para o seu filme?), com uma excelente comeback performance de Josh Hartnett, que parece ter nascido para este tipo de papel (tal como Keanu Reeves há uns anos com John Wick). Sequências de filmagem desconcertantes dos rostos e sorrisos dos atores mostram que Shyamalan abraçou totalmente as suas próprias excentricidades. Embora a narrativa seja sempre caricatural, é cativante em igual medida, as cenas de concerto são estranhamente realistas (muitas vezes), e Trap consegue equilibrar perfeitamente ambos os estilos para criar uma “personalidade” autêntica e única. Detalhes meta como Shyamalan no papel do tio da popstar Lady Raven (que na verdade é uma das filhas do realizador) também contribuem para a identidade do filme, garantindo que a cantora é representada em Trap como um ídolo para o seu público adolescente (que, neste caso, somos nós a ver o filme), à medida que a sua personagem se torna mais uma protagonista ao invés de apenas um truque de fundo. O telemóvel, um símbolo dos concertos pop de hoje, é também inteligentemente usado várias vezes durante o filme, com Trap a retirar o máximo proveito de toda a estética conceptual digital em que se insere. À medida que o filme se desenvolve, Shyamalan mergulha ainda mais nas regras do thriller e de género, torcendo-as e agitando-as numa mistura única de carisma e movimentos de câmara, reviravolta após reviravolta, como se fosse, novamente, tudo uma piada negra auto-consciente, onde o público dá por si sem saber por quem torcer: bons ou maus. Ao contrário de alguns dos últimos esforços do realizador, Trap nunca perde o ritmo e confirma, mais uma vez, M. Night como um dos maiores autores de cinema do nosso tempo. Não agradará a todos, e a estranheza que lhe é característica mantém-se, mas Trap pode ser o melhor filme de Shyamalan desde Signs.
David Bernardino