Vencedor do prémio para o melhor argumento no Festival de Cannes deste ano, e após uma passagem efusiva pelo Motelx, onde recebeu o prémio do público, The Substance (“A Substância“) estreia nas salas portuguesas em data mais do que adequada. A segunda longa-metragem de Coralie Fargeat, leva a “New French Extremity” ao pleno body horror, e conta com o regresso de Demi Moore, que contracena, aqui, com Margaret Qualley. O filme foi visto por três tribunos com opiniões diametralmente opostas.
Sinopse : Uma estrela em decadência utiliza uma substância ilegal para obter, através de um processo de replicação de células, uma versão jovem e melhorada de si mesma. As duas versões devem coexistir para sobreviver.
Regresso triunfal de Demi Moore ao grande ecrã, perto de fazer 62 anos, neste filme vencedor do melhor argumento em Cannes, interpretando uma personagem que se funde com a sua própria percepção social: uma mulher cujos dias de glória no cinema estão no passado e que procura rejuvenescer numa melhor versão de si própria. É o que faz Elisabeth Sparkle (Moore), quando, terminados os seus dias de glória, aceita participar numa bizarra experiência de clonagem em busca dessa versão. The Substance, de Coralie Fargeat, não se coíbe de ir buscar inspiração, imagens e temas a diversos filmes de culto: Requiem For a Dream, The Fly, Carrie, Elephant Man, Alien, enfim a lista é longa. Mas nem por isso The Substance em algum momento perde um fio da sua própria identidade. Filmado de forma absolutamente vertiginosa, num crescendo constante. Demi Moore e Margaret Qualley movem-se por entre longos corredores, salas espaçosas, casas de banho assépticas, numa plasticidade claustrofóbica que que se entranha, literalmente, na pele. Tudo isso é pontuado por um Dennis Quaid repugnante, o representante dos trolls da indústria do espectáculo, que não dá espaço à respiração. À medida que o filme avança, The Substance é mais que a sua “mensagem” acerca do prazo de validade das pessoas, descartáveis claro, nesta idade de imediatismo imagético que teima em renovar-se. O tema está lá, mas o pretensioso preaching é totalmente deixado de lado a favor de um intenso body horror (quase totalmente sem recurso a computador, comme il faut) e de um drama existencial de direito próprio. A um ritmo alucinante, e com um visual permanentemente invasivo, Coralie Fargeat estica a corda de cada vez que aparenta estar perto da sua conclusão, acrescentando camadas que surpreendentemente mantêm a corda firme e continuam a espremer o espectador sensorialmente, em busca de uma experiência rara em cinema. The Substance é um dos filmes que melhor representa, precisamente, o cinema dos nossos dias.
David Bernardino
Coralie Fargeat não segue qualquer instrução nas recomendações de uso do manual de uma nova e apetecida droga do mercado negro, que seduz uma celebridade em declínio, forçando-a a encomendar a substância que lhe irá replicar células e criar temporariamente e espaçadamente uma versão mais jovem e sobretudo melhor de si mesma. Demi Moore e Margaret Qualley são respectivamente a representação vertiginosa do velho e do novo, neste filme completamente insano, brutal e electrizante. Das cores berrantes à aberração vai muito pouco. Do glamour às purpurinas; das bolhas de champanhe resultante do sucesso e do aroma das rosas presenteadas pelo reconhecimento ao sangue e a momentos gore vai ainda menos. The Substance não só é metáfora para a não aceitação do fim e para a negação da inevitabilidade do envelhecimento físico como também é a personificação desesperada e exacta do momento de saída do palco. Este é também o filme que grita de forma drástica e em sufoco quando os holofotes são apagados e quando o momento de retirada é redigido para uma audiência que aplaude ao invés de lamentar. O body horror é canibalesco e conceptualmente é mais oportuno do que nunca. Confirma-nos que o tempo não pode ser empatado, que somos rápida e facilmente substituíveis e que a vaidade é um banquete que nos etiqueta e castiga como narcisistas e responsáveis pela nossa própria destruição.
Rita Cadima de Oliveira
Superficial e vazio quanto as suas personagens, mas movido por sentimentos muito mais baixos. Grande ocular em riste, Coralie Fargeat brinca ao cinema, invocando os inevitáveis Cronenberg, Lynch, e De Palma, colando-se aos valores mais comerciáveis e menos interessantes de Kubrick, e fazendo um pastiche fácil de Carpenter via… Aronofsky. Não será crime, convenhamos, não ter talento, não ter grandes ideias ou histórias para contar. E muito menos não ter uma clara noção do próprio ridículo. Mas é difícil aceitar tamanha ambição e, sobretudo, pretensão, junto a tamanho desprezo pelo mundo. Agressivamente estúpido, The Substance é um filme de gestos grosseiros. Os temas que retrata estão batidos e gastos, e os seus artifícios são terrivelmente previsíveis (aquele punch cut da Thelma Schoonmaker parece burro quando repetido à exaustão). De sobreutilizada nos média contemporâneos, a estética extravagante do filme é também a ressonância da mais crónica futilidade. E se se trata aqui de Mulholland Drive para uma geração alimentada a redes sociais, The Substance mimetiza (ostensivamente?) as próprias imagens sobre as quais propõe reflectir. Mamas, rabo, e rosa choque, não é uma novidade, tudo aqui resulta como a publicidade que tão cinicamente se pretende abordar. E sempre pelos mais mesquinhos impulsos possíveis, do que se passa naquele cenário oco da casa de banho, o body horror será seguramente o menos nojento. Não é necessário ser-se devoto da Demi Moore para nos entristecer que tenha de se rebaixar a este ponto, qual Gloria Swanson dos pobres, sob uma crueldade sem precedentes. E no final até nos esquecemos da tontinha Margaret Qualley, cujo corpo anónimo se funde na plástica descartável das imagens. Enfim, seria quase elogioso falarmos do filme como uma aberração. Digamos apenas que é aberrantemente mau. It’s like seeing someone fart, mas muito mais repugnante, claro.
Miguel Allen