Na sequência da entrevista a David Cronenberg, que publicámos em antevisão a The Shrouds – “As Mortalhas”, recordamos as críticas de dois tribunos aquando da projecção do filme, em ante-estreia, no Leffest 2024. O corpo e a tecnologia digital: “um sudário equipado com câmaras que permite aos familiares manterem o contacto visual com o corpo morto, em decomposição, dos seus entes queridos.”
O realizador canadiano parte de uma premissa relativamente simples, e profundamente cronenberguiana, para construir uma hilariante comédia negra que lhe permite navegar pelo infindável oceano das suas obsessões existencialistas. Karsh (Vincent Cassel, claramente avatar de Cronenberg, ainda que não intencional) é o proprietário de um franchise de cemitérios ultra modernos onde é possível visualizar, através de um ecrã embutido na lápide, os vários estádios de decomposição do corpo ali sepultado. Sempre na fronteira entre a paródia à assepticidade progressiva do mundo contemporâneo (imagens digitais, múltiplos ecrãs, arquitetura, IA) e o absurdismo que a premissa do filme alavanca e as teorias da conspiração consolidam, interessa fundamentalmente a Cronenberg lidar com o luto provocado pelo desaparecimento do corpo da pessoa amada. E o sucesso de The Shrouds está precisamente na forma como o cineasta é capaz de conjugar o humor com a reflexão profunda acerca da organicidade do corpo humano, da interferência da tecnologia na mediação táctil da experiência humana, seja em vida, no sexo ou na morte.
Bruno Victorino
A representar mais uma entrada nos cineastas da sua geração a fazerem filmes mais ou menos autobiográficos (Schrader, Spielberg, Coppola, Iñárritu), Cronenberg examina a morte da mulher sob um prisma tipicamente seu. Do ponto de vista introspectivo, Cronenberg vê-se muito mais como um Schrader, atormentado por um passado sob escrutínio, do que um Spielberg, o auto-coroado eterno rapaz prodigioso. Em The Shrouds, Vincent Cassel é um “produtor de filmes industriais” cuja morte da mulher levou ao investimento num negócio de cemitérios nos quais é possível visionar os cadáveres decompostos dos entes queridos. Cronenberg coloca-se na posição de guarda de cemitério ou de defensor da cripta quando um conjunto de encapuçados profana as sepulturas, incluindo a da mulher. A forma como a investigação criminal aqui decorre assume contornos pós-modernistas ao estilo de Vineland ou Inherent Vice, de Thomas Pynchon: repleta de teorias da conspiração e personagens cuja ligação à realidade é, na melhor das hipóteses, ténue, o que concede desde logo um tom necessariamente humorístico à trama. Cassel tem uma assistente virtual movida a inteligência artificial que o vai sabotando enquanto se transforma em coala, um cunhado perdido nos confins da sua própria paranóia, e uma cunhada atraída sexualmente por teorias da conspiração. A perda e o pesar de Cronenberg podem não ter curas ou soluções, e a prova disso é a derradeira cena de The Shrouds, mas, ainda que omnipresente, a dor nunca é o destino final.
Hugo Dinis