Depois de ter sido o “filme de abertura” do LEFFEST de 2024, The Room Next Door, primeira longa metragem de Pedro Almodóvar em inglês, estreou nas salas de cinema portuguesas. “Leão de Ouro” na passada Mostra de Veneza (com júri liderado por Isabelle Huppert), este diálogo do realizador com a morte, tem sido recebido com pouco consenso, como o demonstram os três tribunos que assinam aqui as críticas ao filme.
A esperança de um primeiro triunfo anglófono de Pedro Almodóvar, depois dos esquissos The Human Voice (2020) e Strange Way of Life (2022), tinha fundamento. Não apenas pelo elenco sonante – liderado por Julianne Moore e Tilda Swinton, e com a presença de John Turturro – mas também pelo output recente de um cineasta que encontrara novo fôlego na melancolia e ponderação dos seus projetos tardios. Infelizmente, e mesmo que se queira encarar The Room Next Door com toda a bonomia, estamos perante um esforço que só pode situar-se entre o sofrível e o desinspirado.
Diálogos robóticos e telenovelescos, captados no mais banal e insosso campo-contracampo, compõem mais de metade desta história de duas amigas que se reencontram ao fim de muitos anos, quando Ingrid (Moore) descobre que Martha (Swinton) sofre de cancro terminal. Até ao pedido de Martha para que Ingrid a acompanhe numas férias – que planeia que sejam as suas últimas – passamos por uma espécie de best of das marcas estilísticas e narrativas de Almodóvar. Há analepses, um evento traumático no passado de uma das protagonistas, vago contexto histórico de um país, personagens fugidias, relato corriqueiro e apimentado de relações amorosas e sexuais… mas tudo é tão corrido e inconsequente que apenas nos restam as cinzas do sentido de trágico que o autor tão bem dominou, durante décadas, para nos provar que ele algum dia existiu.
O filme adquire, apesar de tudo, alguma solidez quando as amigas chegam à casa de campo (um estupendo cenário que, a espaços, é bem potenciado pela lente de Almodóvar para gerar alguma tensão). Livres de desenvolvimentos supérfluos, as personagens (e as atrizes) têm mais espaço para respirar em pleno as emoções que a aura de morte vai suscitando e, ainda que traídas pelo fraco diálogo, Swinton e (especialmente) Moore conseguem elevar a um outro patamar as gotículas de pathos que o guião lhes fornece. A narrativa ganha uma ponta de interesse com a entrada em cena de Damian (Turturro) – claramente um avatar de Almodóvar – e o seu cinismo em diálogo com a praticidade de Ingrid, e a própria montagem parece menos rígida, fazendo as cenas fluir melhor entre a casa e a natureza dos espaços exteriores. Contudo, os únicos momentos de real comoção são alavancados pela colagem a material alheio. The Dead (o conto de James Joyce e a adaptação cinematográfica de John Huston), um plano bergmanesco e alguns apontamentos hitchcockianos são os grandes responsáveis por injetar vida num drama maioritariamente inerte, que nem consegue um contraponto satisfatório para que as instâncias de humor negro com que é salpicado atinjam todo o seu potencial.
Para cúmulo (e corolário) do atabalhoado gesto de The Room Next Door, Almodóvar termina o filme pouco depois de introduzir a sua ideia mais interessante. Não sendo novidade no seu cinema, o invocar do fantasma, neste caso por via de um duplo, fazia antever um ponto de viragem – fosse por ressignificação ou por inflexão narrativa. Nem uma coisa, nem outra se verificam. Ao invés, ficamos com uma citação (textual) dentro de uma repetição (imagética). A redundância a fechar o círculo de um objeto esquecível e dos mais artisticamente desanimadores do ano.
Gil Gonçalves
Para a sua primeira longa-metragem em inglês, Pedro Almodóvar repesca Tilda Swinton, atriz da sua curta The Human Voice (2020), e adiciona Julianne Moore. Ambas enquadram-se perfeitamente no cinema almodovariano e na história de duas amigas que se encontram ao fim de muitos anos. Uma acabou de escrever um livro sobre a morte, a outra tem a morte a bater à porta. Ao longo do filme, são vários os momentos em que Almodóvar aparenta ir dar passo em falso – seja o aparecimento de um ex-amante que ameaça a formação de um triângulo amoroso, ou a possível evolução de amizade para amor entre as duas mulheres, ou até a cena na esquadra da polícia, que simula uma viragem para o thriller. Felizmente, nenhum destes cenários se materializa. O foco de Almodóvar está longe destas distrações. O seu filme, para além do tema principal da morte e da dignidade na morte, interessa-se no poder da amizade. The Room Next Door não termina de acordo com o plano traçado por Martha, o que é perfeito. A verdade é que não conseguimos planear ao milímetro a vida – e a morte também não.
Pedro Barriga
Após Dolor y Gloria, The Room Next Door representa uma nova incursão de Almodóvar na exploração de temáticas relacionadas com a morte. Ao passo que Dolor y Gloria sente sobretudo o impulso de reexaminação da memória e do legado próprio, desta feita o foco está sobretudo na meditação sobre o luto dos que ficam. No caso, Julianne Moore faz de amiga de longa data de uma paciente de cancro terminal na busca de um final digno (Tilda Swinton). O foco de Almodóvar está maioritariamente na forma como Moore lida com a certeza da perda e a iminência da ausência, não fugindo à condição afastada das duas protagonistas. Algures em The Room Next Door está enterrado o olhar cuidadoso e humanista de Almodóvar sobre a natureza da memória e a dor da perda, conforme explorada em anteriores trabalhos do seu período recente como Madres Paralelas ou mesmo Dolor y Gloria. Mas a transição para a escrita na íntegra em inglês, pela primeira vez em longas de Almodóvar, faz de The Room Next Door uma proposta quase comicamente desastrada na forma descuidada como as personagens consistentemente se expressam aqui, muitas vezes a enunciar as suas condições e estados de espírito, frequentemente a embarcarem em diálogos frívolos e incipientes. No estabelecimento da sua premissa, durante a primeira meia hora, Almodóvar envereda por diálogos excessivamente expositivos e explicativos que retiram instrumentos de representação a Moore e Swinton, que aqui parecem acima de tudo de mãos atadas. Embora a ida de ambas para uma casa de férias, por forma a confirmar a definição final de Swinton, sirva sobretudo para conferir a The Room Next Door uma nova envolvente, isolando as duas protagonistas em torno do seu destino, a omnipresença de diálogos estéreis, bem como a inserção temática das frustrações socio-políticas de John Turturro e a implausibilidade da tensão policial inerente ao acto de Moore e Swinton, retiram sempre profundidade e significado a uma afirmação confusa. The Room Next Door é uma obra sobretudo marcada por esta falta de cuidado narrativo, não obstante a habitual sensibilidade estética de Almodóvar servir para cuidar da delicadeza de um final necessariamente sensível.
Hugo Dinis