Candidato ao Óscar de Melhor Filme Internacional pela Dinarmaca, “The Girl with a Needle” (“A Rapariga da Agulha“, no título português, e Pigen med nålen, no título original), é a terceira longa-metragem de Magnus von Horn. Filmada num expressivo preto-e-branco, segue “Karoline, uma jovem operária fabril que luta para sobreviver na Copenhaga do pós Primeira Guerra Mundial.” A dura e perturbadora história de “uma mulher que luta para encontrar o amor e um sentido de moralidade.” Rita Cadima de Oliveira e Hugo Dinis foram assinam as críticas.
A Dinamarca no pós Primeira Grande Guerra é a preto e branco, e de outra cor não poderia ser, nem que seja para realçar a desumanidade desta narrativa grotesca. A esperança está morta, o desespero está vivo e a cor desapareceu da vida. Neste filme, que é desavergonhadamente um indutor de trauma e repulsa, Magnus von Horn faz-se valer de uma impressionante cinematografia a preto e branco para obedecer à sua narrativa sombria. The Girl with the Needle não finge ser outra coisa que não a exploração de uma descida pútrida e impiedosa ao inferno, de uma jovem mulher cujo menor pesadelo é a convivência lúgubre e incomplacente com uma casa que é tudo menos abrigo. O ambiente e a atmosfera de condições parcas, na esfera privada e pública, a par de um período de fome e indigência, são por Magnus von Horn integrados de forma tão austera quanto subtil, conjugando elementos de horror gótico, onde aparentam coabitar as melhores e as piores tendências de Béla Tarr e Gaspar Noé. Tudo se mistura para dar equitativamente ar de tempo clássico e moderno, mas do qual se espera sempre o pior. The Girl with the Needle é um filme opressivo e sufocante, onde a história principal é mesmo o aspecto mais terrorífico e quase animalesco deste todo. O compasso é tenso, antecipando sempre a desgraça, numa espécie de vazio onde só paira miséria, e no qual a sobrevivência se reduz a uma infinito rastejar pelo mal menor. Categorizar a maldade é fácil, representá-la fielmente e irrepreensivelmente é mais difícil, mas Magnus von Horn consegue fazê-lo de forma implacável e assombrosa.
Rita Cadima de Oliveira
Do choque e da exploração. O mais recente trabalho de Magnus von Horn propõe uma visão hiper-realista do pós-Primeira Grande Guerra em Copenhaga. Se o valor da vida durante a guerra se encontra em baixa, von Horn pinta uma visão de absoluta negridão para a mulher no contexto do abandono e violência corriqueira. Ao fazê-lo, vale-se de uma estetização a preto e branco marcada por imagens e composições atraentes para colocar no espectador o ónus do voyeurismo extremo face ao sofrimento das personagens. Karoline (Vic Carmen Sonne) é a principal e passa por todo o tipo de agruras imaginável. Ao seu princípio, Karoline é iludida pela promessa de uma relação matrimonial com o seu patrão, que cedo é rompida pela realidade do estatuto da força material de ambos, a fazer lembrar a narrativa de outros tantos Anoras ou Pretty Womans (women?). Para ilustrar a coisa, von Horn exibe-nos uma cena de examinação de gravidez que expõe desde logo The Girl with the Needle como o longo exercício em escatologia do sadismo que a história de Karoline será. Até porque a relação entre si e o patrão apenas se desenvolveu à sombra da ausência do marido, tendo sido chamado a combater nas linhas da frente. E aqui surge mais uma oportunidade para von Horn dar largas aos seus impulsos exploratórios e sádicos: embora não o saiba ainda, o seu marido Peter (Becir Zeciri) viria a ser a única personagem em torno de si com um mínimo de empatia pela dor contínua de Karoline; ainda assim, ela rejeita-o em prol do patrão. A sublinhar o predicado de Peter está uma grotesca deformação na cara, devidamente ocultada pelo uso quase circense (depois literalmente) de uma máscara, mas cedo prontamente chafurdada com todo o gosto por von Horn. A anteceder a previsível separação entre os dois está uma cena em que Peter tenta partilhar a refeição com a mulher sem sucesso, perante os olhares de repulsa da parte de Karoline às tentativas infrutíferas de Peter em levar a comida e a bebida à boca. É neste tom de chafurdanço explorador gratuito que The Girl with the Needle tenta construir uma narrativa enclausurada pela maior das negruras envoltas em composições atraentes e esparsas, e pontuada pelo uso liberal de uma banda sonora marcada por tons de suspense gótico e laivos de terror.
A partir da sua segunda metade, The Girl with the Needle adopta um foco diferente para o sofrimento de Karoline. Atormentada pela sua incapacidade de cuidar da filha recém-nascida, e após mais uma cena de plena demonstração gráfica do fascínio de von Horn pelo sofrimento alheio na qual esta usa uma agulha para procurar auto-abortar, Karoline recorre a Dagmar, uma vendedora de doces e chocolates (Trine Dyrholm), para entregar o seu bebé a “pessoas que possam usar o dinheiro para fazer o bem”. Claro está, tendo em conta a narrativa até aí, não é difícil de antever o clímax de mais esta linha narrativa com ainda mais potencial sádico. Não obstante, está aqui o ponto redentor de The Girl with the Needle. Ao forçar o inevitável confronto entre Dagmar e Karoline, von Horn abre sobretudo o potencial de mudança para a personagem de Karoline. Essa perpectiva de sinalização comportamental coloca em outra perspectiva os diferentes sofrimentos da personagem que acompanhamos, perante a primeira verdadeira oportunidade de escolha face ao seu futuro. A espelhar isso mesmo está o encontro entre Karolina e a personagem da filha de Dagmar, mais outro inocente espectador face à brutalidade das ocorrências. Mas é no seu reencontro com Peter que Karolina, e von Horn pelos vistos, parecem encontrar um pingo de humanidade no oceano de indiferença e violência muito humana no contexto da guerra do pós-guerra. Não creio, e sinceramente nem consigo dizer, que estes últimos 20 minutos consigam redimir o que antes se passou, mas certamente que não transformam os anteriores 100 em muito mais que um exercício de exploração niilista e desumanizadora, próprio dos tempos em que vivemos.
Hugo Dinis