Críticas a The Devil’s Bath, de Veronika Franz & Severin Fiala

EquipaOutubro 23, 2024

Depois da estreia no festival Motelx, no qual competiu para o prémio de melhor longa europeia, The Devil’s Bath / Des Teufels Bad estreia dia 24 de outubro nas salas de cinema portuguesas. Três tribunos foram ver este slow burn passado na Áustria rural do século XVIII, e deixam-nos três apreciações distintas ao filme.

Sinopse: Agnes é uma jovem recém-casada que, a todo o custo, se tenta adaptar à vida na comunidade piscatória do novo marido, Wolf, apesar da indiferença que este demonstra por ela. Isolada e oprimida, tanto pela sogra austera como pelas crenças religiosas e normas sociais do seu tempo, Agnes perde-se entre o nevoeiro e as sombras da sua mente. 

 

Depois de uma bem sucedida incursão num horror contemporâneo com The Lodge, uma produção inglesa e norte-americana, a dupla Veronika Franz e Severin Fiala aborda um terror atmosférico slow burn passado num meio rural montanhoso, na Áustria, em meados do séc XVIII. O filme repleto de superstição e folclore vai beber à sensação de mal que invade a tela que vimos, por exemplo, em Hagazussa ou The Witch. Contudo, à medida que vai compondo ominosamente as suas set-pieces, The Devil’s Bath vai adiando um clímax que parece nunca chegar nas suas extensas duas horas. Pedia-se mais numa produção desta dimensão que prefere manter-se à tona do realismo ao invés de embarcar naquilo que poderia ter sido verdadeiramente horripilante. A moral da história é mais do mesmo: os seres humanos são o maior dos monstros e as desigualdades sociais talvez não se tenham alterado assim tanto em 300 anos. Ou pelo menos é isso que o filme pretende transmitir.

David Bernardino

 

A fotografia excepcional de The Devil’s Bath leva-nos para florestas profundas de uma Áustria do século XVIII. A densidade campestre e rural deste filme recordam-nos do pragmatismo ancestral, na atribuição de uma causa concreta às dores humanas, realçando a sua oposição e cepticismo em relação às posteriores descobertas científicas do mundo da psiquiatria contemporânea. Neste slowburn feminino, uma mulher é condenada à morte depois de matar um bebé e o seu cadáver decapitado e esquartejado é morbidamente exposto como prenúncio de consequência para crimes semelhantes. Por seu lado, Agnes é condenada ao casamento com o seu amado, preparando-se para uma vida de esposa e sincera serventia. Naquilo que é uma rejeição física por parte do seu agora marido, Agnes sente-se pesada, na cabeça e no coração, passando as provações resultantes de sentimentos não correspondidos. Dia após dia, esta sente-se cada vez mais presa num caminho obscuro e solitário que a transporta para pensamentos cada vez mais negativos. Assim, o terror neste filme é mesmo a transgressão religiosa que se apresenta como o crime mais punível. Neste psicodrama angustiante e assombrado pelo tédio quotidiano e enraizado da vida agrícola, revela-se relativo respeito pela heroína moralmente e emocionalmente isolada, enquadrando a sua evolução como parte de um fenómeno mais vasto. As lacunas eclesiásticas que explicam as suas escolhas são menos importantes do que o desespero que a leva a fazê-las. The Devil’s Bath concede uma atenção imaculada aos detalhes, ao serviço da inescapável actualidade das suas circunstâncias. Esta é uma história sobre a procura desesperada de expiação a uma mulher recém-casada e deprimida, numa sociedade que vê as mulheres sem filhos como um pecado vivo, recusando-se a deixar-nos julgar as suas acções por qualquer outro padrão. A intemporalidade das suas circunstâncias não é assustadora nem motivo de condenação, talvez apenas as especificidades que se dá à resposta a este temática. Apesar de The Devil’s Bath não ser um filme convencional de terror, é facilmente assustador pela missão imposta à mulher desde os primórdios. A sensação de desconforto que nos causa, por meio da sua génese bucólica e rústica, assumidamente focada na saúde mental como demónio desconhecido, tornam este slowburn previsível mas nem por isso menos inquietante ou desconcertante.

Rita Cadima de Oliveira

 

Saúde mental na Áustria rural do século XVIII. Resume-se assim, de forma muito diluída, a premissa deste The Devil’s Bath. Mais do que diabos ou banhos (mas com uma excelente exploração do que a expressão banho do diabo significa), este filme de época oferece-nos um olhar sombrio sobre a saúde mental, a religião e os papéis limitativos impostos à mulher numa sociedade patriarcal. Seguimos Agnes, uma jovem recém-casada que se vê esmagada pelas expectativas de ser uma boa esposa e uma boa mãe. O marido de Agnes, apesar de não ser deliberadamente cruel, é emocionalmente distante e desinteressado nela, tanto a nível pessoal quanto sexual, o que a impede de cumprir o esperado papel de mãe. No entanto, ela carrega essa culpa sozinha, isolada e sem apoio, o que a empurra ainda mais para o obscurantismo religioso. A religião não serve como um escape, mas sim como (mais) uma ferramenta de controlo que leva as pessoas a fazer o impensável. The Devil’s Bath sublinha o quanto as normas religiosas e sociais podem agravar problemas psicológicos, especialmente numa época onde a depressão era desconhecida, e encarada como uma falha moral, falta de fé ou – pior – obra de Satanás. Visualmente, o filme é uma pequena jóia, apesar de pouco ter a mostrar que não a dureza da vida numa pequena aldeia piscatória e os seus parcos confortos disponíveis. Filmado em 35mm e com planos belíssimos, foi com justiça que venceu o Urso de Prata pela cinematografia de Martin Gschlacht na Berlinale. Comparando com outros folk horrors recentes, como The Witch ou Hagazussa, The Devil’s Bath distingue-se ao focar-se menos no sobrenatural e mais na dura realidade histórica. A narrativa baseia-se em factos reais – Veronika Fiala e Severin Franz recorreram a transcrições de processos judiciais da época e a uma investigação profunda sobre este período largamente desconhecido da história para conferirem ao filme um realismo e uma textura notáveis. Ao contrário de monstros ou bruxas, o verdadeiro terror aqui está no realismo – naquilo que sabemos ter realmente acontecido a centenas de pessoas, centenas de mulheres. Embora seja um filme denso e desafiante, The Devil’s Bath recompensa o espectador paciente com um retrato poderoso e doloroso de uma página esquecida da história. Não é fácil de ver, mas traz à tona uma realidade que nunca deveria ser ignorada—e nunca mais vão olhar para pêlos de cavalos da mesma maneira.

Carla Rodrigues