Críticas a Tardes de Soledad, de Albert Serra

EquipaMaio 29, 2025

A solidão de um homem face ao touro na arena, Tardes de Soledad segue Andrés Roca Rey, toureiro peruano de 28 anos, um dos maiores actualmente em Espanha. O novo filme de Albert Serra, após Pacifiction (2022), Concha de Ouro no Festival de San Sebastián de 2024, estreia nas salas portuguesas. Rafael Fonseca e Miguel Allen assinam as duas críticas.

 

O plano longo em Albert Serra – e por vezes não são planos longos que vemos, mas a sensação de plano longo dada por uma montagem de momentos e ações de grande semelhança entre si: temos a impressão de assistir a touradas inteiras – o plano longo em Serra, dizíamos, é diferente do oliveiriano, do apichatponguiano: recordemos o sereno ardor dos planos de Liberté (2019), que “tranquilizava” uma grande luxúria, de um sexo lunar, na pura duração, na imagem-tempo. Serra, um realizador que é memorável ouvir pessoalmente, de grande energia discursiva (um complemento interessantes aos seus filmes), posiciona-se quase como “anti-documentário”, no que toca àquilo que interessa ao seu cinema. Gesto artístico preguiçoso, o documentário tem como seu superior a ficção em praticamente qualquer caso, com algumas excepções: aquelas onde as coisas atingem já uma espécie de irredutibilidade, uma expressão máxima, na vida real; Tardes de Soledad (2024) é um tal caso: imaginemos os trabalhos e recursos necessários a ficcionalizar com fidelidade uma tourada quando ela já existe da forma que aqui vemos em Madrid: treinar actores, arranjar animais, figurantes, duplos… não se chegaria perto do fenómeno real. Portanto, para este assunto, Serra cede ao documentário: seguimos o toureiro matador Andrés Roca Rey, uma espécie de glamstar de vinte e oito anos, entre touradas e viagens no carro – são maioritariamente os únicos cenários, com duas ou três excepções memoráveis em camarins e divisões de hotel. Nas touradas, além do som directo que é capturado em Andrés (este será um documentário de visionamento importante para operadores de som) temos também sempre microfones junto à cerca que separa a praça da primeira fila de espectadores, normalmente composta por outros cavaleiros e restantes membros da quadrilha íntima do matador. O resultado é uma espécie de tourada com comentário, descoberta a posteriori na montagem (Serra não sabia, durante as filmagens, o que os outros conversavam). E nestas conversas, o filme descobre-se como surpreendente comédia do real, ou pelo menos da agonística aqui presente: seja a natureza do comentário positiva (Estás entre os maiores! Que cume! Que ser humano incrível que és!) ou de alguma consternação (Com calma, com calma!), também por parte do próprio Andrés (Esta orelha [morte do touro] vai receber críticas. Tive sorte, não tive?), o eriçamento e o estado de excitação é permanente. Já tínhamos essa sensação durante o filme, mas Serra confirma-nos o dado estatístico: a palavra mais usada no filme é “tomates”, prefixada de “grandes”, “que par de”, “que demonstração de”, e por aí fora.

O perigo é real: quanto mais rente Andrés faz o touro passar por si, mais está “entre os maiores” (os medíocres invejam-te, é por isto que as pessoas te odeiam, diz-lhe um colega a certa altura) – vemos várias vezes os resultados disso, com o touro a jogar Andrés ao chão, a esmagá-lo contra as barricadas, visitas a médicos a seguirem-se às corridas, em que Andrés entra em carros de bata de hospital. “A vida não vale nada!” exclama um dos toureiros a certo ponto. Deste risco constrói-se tudo, as suas poses extravagantes e olhar distante, a sua monomania e a dos outros. Tudo o resto, de facto, é também real, e compreendemos aqui o triunfo deste documentário sobre qualquer ficcção.

Serra conta-nos, e é um dado supremamente interessante sobre o filme, havendo sempre aquela questão em documentários de como terá sido a relação com os sujeitos filmados, que os toureiros – nas cenas de limousine de transporte têm uma câmara fixa colocada directamente para si – estavam tão intensamente “ligados”, tão keyed in, que era igual para eles estarem a ser filmados ou não, sabiam que a câmara estava lá mas era irrelevante, irrisório, estavam preocupados com assuntos de muito maior importância, elevados a uma outra dimensão. A certo ponto no filme, após uma tourada, entram todos no carro e um dos toureiros que auxilia Andrés (uma hora inteira depois da tourada, informa-nos Serra, não foi logo a seguir) emociona-se e passa a viagem inteira com os olhos marejados, Andrés e os restantes reflectem constantemente no que se passou: “Hoje calaste muita gente, Andrés. Com que verdade mataste o touro… És o cume, estás entre os grandes, tens um grande par de tomates.” Andrés raramente responde a estas coisas, por vezes mostra-se pensativo e inseguro: “Aquele primeiro touro era agressivo… o touro não tombava…”. Na arena, os colegas são quase sempre acometidos de fúria: “Mata esse filho da puta!”. Para o realizador, na ficção, consegue os resultados que busca nos actores através da pressão. Aqui, diz-nos, essa pressão já existe, constantemente: eles estão a fazê-la a eles próprios. A câmara e os microfones desaparecem. Era depois das filmagens que por vezes os toureiros pediam a Serra para tirar uma coisa ou outra que tinham dito, por vezes informação pessoal ou delitos ofensivos: no momento, não estavam a pensar nisso.

A maior resistência, é importante notar, foi mesmo com as imagens do touro a morrer em grande violência. Os toureiros não queriam que isso aparecesse no filme, não querendo “dar uma má imagem das touradas”.

Dizíamos que o plano longo de Serra é diferente dos outros. Só assim é que as cenas intermináveis na arena (alguns espectadores devem ter concluído, sim, o filme é mesmo só isto) operam um efeito neutro, porventura meditativo – não me causaram quase nenhum mind wandering. O realizador diz que filmou centenas de horas (“500, 600. Não, isso foi em Pacifiction, aqui foram umas 700) e que trabalhou com outros três montadores “sete dias por semana durante nove meses” – “mais ninguém faz isto como eu”, diz-nos, numa das suas saídas sui generis. De facto, temos estado a pensar no filme desde aí.

Rafael Fonseca

 

A câmara permanece em baixo, como se dentro da arena. O corpo pesado do touro em grande plano, o sangue que brilha sobre o seu dorso, e o olhar transtornado de Andrés Roca Rey. Ouvimos um público que ovaciona o toureiro, as suas demandas e aclamação final, ouvimos os comentários de todos os que envolvem a cena, mas Serra limita o seu (e o nosso) campo de visão às barreiras vermelhas daquele espaço, à terra amarela que escorre pelos pés do toureiro e pela boca do animal, às diferentes figuras que enquadram o duelo. De sangue e suor, ali, “a vida não vale nada”, e o que nos vale, na verdade, é um belo par de huevos — os maiores.

Um não-documentário, Tardes de Soledad concentra-se quase exclusivamente — e, em aparência, quase ininterruptamente — na acção do toureiro e da figura imensa da besta (serão quatro ou cinco touros diferentes, pelo filme). Em falso “tempo real”, acompanhamos o embate daquele corpo mitológico, massivo e brutal, do animal negro e anónimo, contra a forma quase feminina, colorida e delicada, do seu agressor. É um estranho espectáculo, feito de sistemáticas contradições e anacronismo, do qual Serra não pretende, à partida, retirar grandes conclusões. À ideia do «sacrifício desportivo» de um animal, o realizador responde-nos em grande plano, com imagens muito explícitas do touro, a sua máscara inexpressiva, esboço tosco de um acto cultural de agressão, um animal sempre na espera de um golpe concludente pelo homem exuberante que o desafia.

Não se tratando aqui de um exercício declaradamente expositivo pelo seu limitativo registo formal, sê-lo-á, ainda assim, pela distância que Serra trabalha relativamente ao seu objecto. Não nos valeria, é certo, uma posição mais prosaica do autor quanto à “tourada” em si, mas parece faltar ao filme uma leitura mais cinematográfica do momento (tempo e evento) que existiu, uma visão porventura menos superficial das suas coisas. O campo expressivo de Tardes de Soledad fechando-se algo obtusamente sobre os seus próprios limites, as imagens do filme existem também, efectivamente, nesse seu alcance “restringido”.

Efectivamente, Tardes não será tanto uma obra sobre a ou aquela tourada, mas sobretudo o ensaio de um retrato íntimo a partir de um lugar (ou evento) público. De em torno do toureiro chegam-nos os fragmentos sonoros do seu público, os comentários mais ou menos directos dos seus colegas. Pelos percursos de carro pela cidade — planos fixos sobre um rosto algo perdido de Andrés Roca Rey (a sua língua sobre os lábios secos repetindo o movimento da língua do touro) que intercortam as longas sequências na arena — presenciamos a sua aclamação pública anónima, bem como o elogio dos outros toureiros e sua equipa. Rey será, afinal, o contraponto que o filme sistematicamente propõe ao enigmático grande plano de abertura (do animal e sua respiração, sobre fundo escuro), mas a abordagem de Serra é tanto concentrada (insistente e realista) como determinadamente indirecta.

Numa importante cena ao centro do filme, Rey, no seu quarto de hotel, prepara-se com a ajuda do seu agente para a próxima corrida. Uma indumentária anacrónica para um evento anacrónico, um episódio curioso, cerimónia de atavismo e superstição. A objectiva de Serra aproxima-se intimamente de Rey, do seu corpo quase despido, fragilizado pelo touro; interessa-se pela sua expressividade física num momento mais privado (enquanto se dirige para a arena), pela sua expressão facial. Mas a sua figura parece sempre “escapar” ao registo enquanto o toureiro assume em cena uma mais concludente persona pública. Rey questiona-se e questiona-nos sobre a sua performance, segue algo ausente os comentários dos seus colegas e admiradores (“és um cume”, “estás lá em cima com os grandes”), mas tudo o que presenciamos se desfaz na nebulosidade subtil do filme. Como as cores fortes da tourada que se parecem esbater pela fotografia “embaciada” de Artur Tort (no último embate, o touro já sangra ouro), também a imagem de Rey aqui se esbate, a cada passo mais incerta. Na verdade, será apenas numa rara ocasião, sem o toureiro em cena, que o filme parece revelar algo para além desses ecos matizados do estranho esplendor folclórico que pretende abordar. Com Rey fora de campo (no hotel a descansar), os colegas discutem os riscos desnecessários que a jovem estrela parece correr, a sua postura estranha no terreno, a evidente tragédia que se evitara numa, como em tantas outras tardes.

A soledad do título evoca um outro tempo, aquele que sempre se encena naqueles palcos de terra batida e sangue. A Serra interessa-lhe a “poesia” do movimento, a violência daquela cerimónia cultural de fundo regional, mas desvia o seu olhar da pluralidade do evento público. E, enquanto o touro cai, para se juntar à sua puta madre, o filme cinge-se, afinal, um pouco mais às suas inconclusões. Uma obra fechada.

Miguel Allen