Estreado internacionalmente no Festival de Cinema de Marselha (FIDMarseille), em junho de 2024, e posteriormente exibido no DocLisboa, Sob a Chama da Candeia é o mais recente projeto do cineasta português André Gil Mata. O filme foi amplamente reconhecido pela crítica, recebendo o Prémio de Melhor Filme na competição “As Novas Vagas” do Festival de Cinema Europeu de Sevilha, em novembro do mesmo ano. Já nas salas portuguesas, esta viagem pelas memórias de infância do realizador, baseada na história da sua avó e da casa onde viveu, em S. João da Madeira, propõe o cruzamento de temporalidades, gerações e afeções num retrato intimista e fragmentário. Dois tribunos já assistiram e deixam-nos agora as suas críticas.
Norte de Portugal. Uma casa de azulejos verdes, um jardim, uma magnólia. Quartos cheios de objectos de vidas passadas aqui. Traços do tempo, gestos e afectos. Aqui Alzira nasceu, viveu e morreu; aqui foi filha, mãe e avó; aqui brincou em criança, aprendeu piano, e dedicou-se a um marido austero. Viveu todos estes anos com Beatriz, a empregada, ao ponto de hoje já não a suportar. Na noite da sua vida, Alzira, libertada pela morte do marido, toma pela primeira vez uma decisão que só a ela pertence.
Dado o panorama contemporâneo do cinema mundial, é fácil que um filme como Sob a Chama da Candeia se destaque enquanto proposta arrojada, de rara densidade estética. Com efeito, não falta ambição ao projeto de André Gil Mata: embora assente em motivos narrativos e cénicos convencionais e frequentemente associados à tradição romanesca — o casamento forçado, o talento interrompido e a vida enclausurada de uma mulher —, o filme afasta-se deliberadamente de uma lógica literária, entregando às imagens a tarefa de revelar a poesia do quotidiano, num exercício quase mudo. O que se nos apresenta não é tanto uma narrativa no sentido clássico, mas uma sucessão de gestos, silêncios e rotinas filmadas com uma contenção austera, que praticamente rejeita o drama em favor de uma evocação fragmentária da memória.
Esse recuo da narrativa tradicional é sustentado por uma abordagem formal particularmente rigorosa. A direção de fotografia — meticulosa, belíssima — alia-se a uma direção de arte igualmente cuidada para compor uma atmosfera de tempo suspenso num espaço fechado: uma velha casa senhorial no Norte de Portugal, onde Alzira e a sua empregada Beatriz, agora idosas, partilham décadas de hábitos e silêncio. A câmara move-se com lentidão cerimonial, em panorâmicas e deslocações laterais que absorvem cada recanto do espaço, enquanto os planos fixos se prolongam, pacientes, para lhe conferir uma qualidade quase tátil (para a qual contribui a captação em película). O silêncio impõe-se quase por completo. É um gesto formal contra-corrente, que aposta na contemplação e na repetição para fazer sentir o peso da clausura. O círculo — seja nos gestos, nos movimentos da câmara ou na própria estrutura narrativa — torna-se figura recorrente de um quotidiano sem fuga, onde o tempo se dobra sobre si mesmo.
Mas se há rigor, há também um grande vício estilístico. Lentidão e silêncio, aqui, nem sempre equivalem a subtileza e profundidade. Por detrás da contenção, sente-se frequentemente uma necessidade de afunilar sentidos, como se o filme não confiasse plenamente na ambiguidade das suas imagens (ou no intelecto do espectador). A cena do pedido de casamento — sublinhada por um zoom enfático no rosto de Alzira – é disso exemplo: o gesto visual comunica o desconforto da personagem com suficiente (e até excessiva) clareza, mas a insistência num eco verbal posterior retira-lhe espessura. Este tipo de redundância repete-se, fazendo com que o filme se torne, paradoxalmente, demasiado explicativo, até a nível estrutural: a certo ponto a leitura de uma passagem de um livro de estudo sobre a rotação da Terra estabelece um paralelismo desnecessário entre o trânsito cósmico e a circularidade do quotidiano de Alzira, do seu enclausuramento doméstico. Uma ideia já abundantemente explorada por… tudo o resto que acontece.
A insistência na repetição — de gestos, planos, trajetos dentro da casa — também acaba por trair os propósitos temáticos de Candeia, em diversas instâncias. Se, por um lado, sublinha a ideia de aprisionamento, por outro, tende a empurrar o filme para a inércia. O plano-sequência no pátio da casa, por exemplo, repetido como uma espécie de separador entre segmentos, vai perdendo fôlego a cada iteração, ficando reduzido a pouco mais que um glorificado plano de corte. A própria articulação entre passado e presente, que poderia introduzir uma dimensão mais onírica ou incerta, tende a ser resolvida de forma direta: as transições deixam pouco por sugerir, e a relação entre as versões mais novas e mais velhas de Alzira torna-se rapidamente inequívoca. Também a distância que a câmara mantém das personagens, filmadas como figuras quase espectrais, contribui para uma frieza emocional que torna difícil aceder aos ritmos interiores que o filme procura evocar. A beleza dos quadros, por mais evidente que seja, raramente se traduz numa emoção sentida — e há algo na austeridade do dispositivo que, em vez de perturbar ou inquietar, torna tudo assético, dormente.
Ainda que se afirme como um objeto de depuração estilística notável, erigido com evidente controlo e convicção autoral, Sob a Chama da Candeia é refém de uma linguagem demasiado afetada e sufocantemente coreografada. Raramente abre espaço ao imprevisto e, quando o faz, deixa demasiadas ideias por desenvolver (como a introdução de familiares de outras gerações ou a hostilidade que se manifesta tardiamente entre Alzira e Beatriz). Em vez de trazer o espectador para dentro da sua matéria sensível, mantém-no à distância. O potencial das emoções reprimidas, do comentário social e do valor sentimental (o filme é baseado em experiências de infância do realizador e na vida da sua avó) acaba por se reduzir a uma sucessão de soluções fechadas, onde o silêncio raramente interpela e quase sempre confirma.
Gil Gonçalves
A primeira vez que a câmara desce da ameia que dá para a igreja, passando primeiro pelo tronco de árvore e depois pelos arbustos (isto acontecerá mais três vezes), pensei nos arbustos de rosas filmadas, durante o dia, de Brakhage. À segunda vez que o movimento se repete, pensei no Merriweather Post Pavilion, dos Animal Collective, quando passa pelos arbustos. Na “In The Flowers”, o Panda Bear e o Avey Tare (acho que o Deakin não estava aqui, embora alguém na net ache que é a voz dele na parte do “To hold you in time”), quando eles cantam “If I could just leave my body for the night”, etc, é o que estou a pensar a segunda vez que a câmara passa pelos arbustos: também já fui assim para o jardim fotografar as camélias floridas com flash, à noite…fiz isso. Ainda pensei noutras coisas: na cena do sarampo pensei na Caddy e nos seus irmãos em Faulkner, à espreita nos pomares pantanosos à volta da casa, isto foi na parte que nos créditos André Gil Mata parece ter denominado como “Sarampo”, embora fizesse mais sentido eu pensar na Caddy e nos irmãos no segmento do velório, mas…
Dentro do quarto, o médico examina, e ausculta, há o movimento de se levantar e de fechar a mala, há ainda à porta do quarto vermelho um quadro extraordinário depois da entrada de uma voz de mulher e outra de homem, com a câmara a descer ao longo da porta, onde se ouvem sons de conflitos corporais, uma espécie de garreia e uns embates suspirados, que parecem os eflúvios de um sexo a acontecer do outro lado da porta, mas são (não vemos) as crianças a brincar junto à greta da porta…
À terceira vez que a câmara passa pelo arbusto, não sei precisar do que me lembro, porque a este ponto já me estou a lembrar da minha vida toda, mas rigorosamente toda: não há nada que eu não recorde, e se me faltou alguma coisa foi por falta de duração do filme. O efeito do filme é real, o efeito destes planos é real. No início do filme, no seu sétimo ou oitavo plano, com Beatriz e Alzira já levantadas e à mesa, uma Márcia Breia e Eva Ras absolutamente extraordinárias, comem pão, a olhar para outros lados. As coisas que acontecem na cara de Márcia, para quem estou a olhar, mas certamente também na cara de Eva, para quem não estou a olhar mas que poderia perfeitamente ver outra vez e descobrir, estas coisas mostram que a duração do plano foi insuficiente: ela pensa, ou sonha acordada, depois pára de o fazer, talvez, enfim, consigo rever um pouco dos gestos da sua cara a comer, o plano aguentaria a refeição inteira. Deste filme, tinha ouvido dizer que só havia não sei quantas falas, ou que a primeira palavra só se ouvia à meia hora. Pois bem, o filme só não é melhor porque não passam duas, quatro, seis horas até à primeira palavra. Lembrei-me de rigorosamente tudo a ver estas duas mulheres a andar dentro de casa. O acordar e o levante delas nos quartos: com o filme compreendo estes tocadores perfeitamente, e as janelas, o espaço que no corredor existe entre os quartos – sair de um quarto para um corredor, olhar para a entrada de outro quarto, de noite. O silêncio delas. A empregada e as torneiras. O silêncio das salas. Dormir no cadeirão depois de ter dormido na cama, as torneiras da pia. Os relógios de prateleira durante a noite – há muitos, muitos anos, à excepção de algumas aproximações memoráveis, que eu não sei o barulho que uma sala faz de noite. E como me recordo exactamente do que isso era! E está aqui, neste filme! Esse som e aspecto estão filmados aqui. Eu fujo desse som, não fico acordado em salas à noite. Vivo como um ciclone. Tenho consciência da minha morte. Sei bem que tenho uma quantidade de tempo descrescente.
A quarta vez que a câmara passa pelo arbusto, é de noite, está a chover. Porquê este tronco? Da quarta vez que a câmara volta à ameia a dar para a igreja, entre o arbusto e o cão. Porquê este tronco entre a vista da igreja e o arbusto? A infância é um mistério e o futuro é o fim de um túnel coberto por dentro de bruma, mas é mesmo um fim. O sótão, a preceptora. Um filme extraordinário.
Rafael Fonseca