Críticas a Sinners, de Ryan Coogler

EquipaAbril 22, 2025

Sinners tem estado nas bocas do mundo desde a sua estreia na semana passada. Ryan Coogler parece, enfim, livre da mão da Marvel (para a qual realizou Black Panther Wakanda Forever), e junta-se pela quinta vez a Michael B. Jordan para aquilo que tem sido descrito como um filme de terror sobrenatural gótico sulista. Quatro tribunos foram ver esta “dança com o Diabo.”

Sinopse: Na tentativa de deixarem para trás as suas vidas problemáticas, dois irmãos gémeos regressam à terra natal, apenas para descobrirem que um mal ainda maior os aguarda à chegada.

 

“Oh, when them cotton bolls get rottenYou can’t pick very much cottonIn them old cotton fields back home”
Cotton Fields, Lead Belly

Um afro-americano, um vampiro e um irlandês entram num bar. Todos eles pretendem dançar com o diabo, mas este demónio está cansado, lança o caos e sai de fininho, deixando para Michael B. Jordan a resolução da desordem. Ryan Coogler faz de Sinners uma ode trágica ao deep south, mergulhando na génese da América, aprofundando-a e apimentando-a com velhas temáticas cujos traumas perduram e ainda muito importunam. A escravatura é abordada de forma sombria mas delicada, sendo adornada por uma banda sonora astuta e sedutora, que traz do início ao fim as riquezas harmoniosas do folk irlandês, do gospel, do jazz e da música soul. A narrativa é salpicada com tensão, explorando, de forma tão lírica quanto austera, as marcas físicas e emocionais daqueles que trabalhavam nos campos de algodão, apalpando os seus fantasmas e inserindo, sob a forma de diversas camadas, a eloquência do blues, do jazz e até de matérias mais inóspitas, como o voodoo e, pasme-se, vampiros. Sinners assume-se, sem pudor, como um filme musical de terror, mas também como um drama e thriller gótico. Infelizmente, não consegue apagar um descuidado uso de CGI, relembrando a enfermidade Marvel da qual já ninguém deveria padecer. Contudo, é a efervescência grupal (e a expressiva envolvência carnal e psíquica), na qual irlandeses, afro-americanos e ameríndios se mesclam num espaço comum, que dá força a um filme que procura afirmar a beleza e a crueldade desta conjugação étnica distinta. Ryan Coogler tenta incessantemente reescrever, não de uma forma fracturante, mas humanista, uma visão sugestiva de convivência destas várias proveniências culturais no mesmo território físico e espiritual. E é neste ser tudo ao mesmo tempo, em todo lado que Coogler consegue não deixar pontas soltas, apaziguando a sua proposta com um argumento sedutor, uma narrativa hábil e de elevada pertinência em quase todas as escolhas e caminhos que trilha.

Rita Cadima de Oliveira

 

A sequência central de Pecadores, o núcleo do filme, aparece-nos a meio, quando “Preacherboy” Sammie (Miles Caton) toca e canta os blues, a voz e a guitarra a ditar o ritmo da dança dos corpos e da câmara. No prólogo, é-nos dito que alguns predestinados possuem o “dom” de, através da música, convocar os espíritos do passado e do presente; aqui, a ideia é concretizada em matéria, o cenário transcendendo o espaço-tempo, a memória coletiva de uma diáspora levada à força de casa unida pelas vibrações sonoras de ritmos tribais, guitarra elétrica, DJing e hip-hop, todos os registos magistralmente orquestrados por Ludwig Göransson. “Travelin’ / I don’t know why in the world I’m here”, todos estes fantasmas num só lugar, ecos de eras diferentes emanando um só hino de revolta comum: a um tempo, dor e liberdade.

É das visões mais originais e visceralmente propulsivas do cinema americano mainstream recente e, só por si, faz valer o preço de um bilhete. O resto da obra, uma estranha confeção de terror/musical/filme de ação/drama histórico sobre as feridas não-resolvidas da América racial, também resulta, cimentando Ryan Coogler na primeira linha de uma nova geração de cineastas (Chazelle, Gerwig, Jenkins, Aster, Safdies, Peele, Eggers) que, na última década, despontaram no sistema americano como a “areia na engrenagem” dos super-heróis e da propriedade intelectual, espécie de “irredutíveis gauleses” em nome do verdadeiro cinema (seja lá o que isso for).

A linha, claro, é tão ténue como a que em Hollywood sempre (nunca?) separou a arte do comércio. O segredo está, como sempre esteve, no casamento entre a arte e o dinheiro, em encontrar o ponto de equilíbrio entre a disrupção e o status quo — algo que o realizador já tinha ensaiado em Black Panther, ainda hoje um dos mais interessantes e originais projetos saídos da fábrica de salsichas Marvel. Pecadores pisa, na verdade, terreno semelhante ao da adaptação da banda-desenhada: se aquela explorava o trauma histórico da comunidade afro-americana através do filtro do afro-futurismo e de um “what if” genuinamente estimulante (ainda que apenas sugerido), esta faz o mesmo a partir de um ângulo cultural, ligado à música e às suas tradições de resistência. A dos negros sulistas, para quem a escravatura era ainda naquele tempo memória viva (para não dizer experiência diária); mas também a dos brancos, os irlandeses que construíram a América e que aqui encarnam os monstruosos vilões, mas que, relembra-nos o filme a certa altura, também fugiram no passado dos seus próprios fantasmas opressores.

Que Pecadores consiga fazê-lo sem abdicar dos pergaminhos de cinema-espetáculo, do tipo que a Hollwood de outros tempos produzia de olhos fechados, é o seu grande mérito. Talvez seja no segundo campo, aliás, que a proposta mais claudica em certos momentos, que impedem o filme de atingir todo o seu potencial. A intenção clara de ocupar vários (talvez demasiados) registos e fios narrativos ao mesmo tempo resulta, por vezes, num filme desencontrado entre os seus múltiplos movimentos. A solução do argumento passa muitas vezes por uma dependência na muleta da exposição narrativa para fazer avançar a máquina, estratégia que é eficaz, mas deselegante. Começa mesmo a perder algum gás na reta final, resolvendo-se de forma algo desarticulada e aos solavancos. Fica difícil não nos lembrarmos de Aberto Até de Madrugada, clássico de culto da década de 90, de Robert Rodríguez, co-escrito por este e por Quentin Tarantino. Só que o que joga a favor desse filme é justamente a sua simplicidade, de uma proposta que claramente não se apronta a mais do que uma divertida homenagem aos filmes de exploitation que formaram aquela dupla. Em Pecadores a ambição é claramente outra, e por isso a pressão para corresponder também. Contas feitas, é meramente “bom”. O que, nos tempos que correm, equivale a dizer “excelente”.

André Filipe Antunes

 

Sinners é, para o seu tempo, um filme particularmente original – se conseguirmos esquecer o facto de que é basicamente um cópia conceptual de From Dusk Till Dawn (Robert Rodriguez, 1996). Não se trata, ainda assim, de um filme audaz, estando sempre agarrado à sua temática crowd pleaser e jogando pelo seguro com um estilo que irá provavelmente agradar o espectador médio que se autodefina como mais refinado. É, portanto, um filme narcisista, claro. Ainda assim o trabalho que é feito por Ryan Coogler para trazer um raro filme de género – que mistura história, drama e terror – a uma audiência alvo afro-americana, desenrolando a sua acção no delta do Mississipi, nos anos 30, é o suficiente para confirmar a originalidade de Sinners. A mistela de géneros não existe, no entanto, sem as suas fraquezas, falhando na execução e na cola que interliga os seus subgéneros algures a meio. Sinners quer ser tudo em todo o lado ao mesmo tempo, conseguindo oferecer bom entretenimento de género, na exacta mesma medida que está manietado pelas mensagens e símbolos que pretende inserir, sacrificando por consequência a cadência lógica do seu argumento. O filme está particularmente mal montado, com um terceiro acto interminável que pura e simplesmente não consegue encontrar o momento certo para o seu final. Sinners parece ter (e não falamos apenas nas malfadadas cenas “pós créditos”) vários finais, um após o outro, apenas e só pela vaidade de acrescentar “só uma coisinha mais”. Por um lado leva-se demasiado a sério, com um desenvolvimento de personagem exaustivo e comentário social. Por outro, abraça de forma quase cega as regras da estética série B de acção/horror. O filme de Ryan Coogler é sem dúvida uma experiência alucinante, ainda que bastante instável.

David Bernardino

 

The best part of me was him“, “You keep dancing with the devil, one day he’s gonna follow you home“. Quem se sentar no cinema para assistir a Sinners, arrisca-se a ouvir um rol de one-liners que evocam a sabedoria popular negra sulista. Ryan Coogler é um cineasta que tem vindo a marcar a sua obra pela exploração da tradição afro-americana quebrada pela foice do racismo. Sinners é, assim, o resultado da ambição de Coogler em colocar uma visão gótica sulista em torno da experiência negra envolta no espectro da escravatura. No plano puramente conceptual, Sinners apresenta-se como uma proposta inovadora e diferente: ao evocar a América profunda de Flannery O’Connor, Coogler procura fazer casar um drama criminal e familiar com o realismo mágico próprio da arte gótica sulista. Ainda assim, Coogler retém a moldura mental e a mundividência que colocou em prática no seu trabalho com a Marvel. A tendência para o espalhafato, as influências do mundo dos super heróis, e o maximalismo maniqueísta fariam sempre de Sinners muito mais From Dusk Till Dawn do que Wise Blood. Para operacionalizar a sua premissa, Michael B. Jordan surge de novo como principal colaborador, desta feita no exigente duplo papel de um par de gémeos que regressa ao sul para criar um bar de jive e blues. A ligação da música à cultura afro-americana é assumida por Sinners quase ao ponto do musical: aqui Coogler junta o blues ao tribalismo africano e ao hip hop moderno para recriar a invenção musical afro-americana e o seu papel nas vivências de um povo explorado e diminuído. Sinners tem o seu forte nesta composição sulista. Os irmãos servem de base para a apresentação de uma série de personagens que relembram a experiência negra sulista, desde o veterano dos blues (o sempre impecável Delroy Lindo) à rapariga branca atraída pela cultura negra (uma Hailee Steinfeld de sotaque sulista sofrível). “For a night, we were free”, diz um dos irmãos na cena pós-créditos (outra marca Marvel). A noite em questão, a primeira do bar dos Jordans (Smoke e Stack), pega em todo o trabalho de contextualização e criação de personagens da primeira hora de Sinners e atira-o para a estaca da caça ao vampiro. Desde logo, o lore dos vampiros não se presta a grandes invenções nem ideias novas, mas sobretudo coloca em evidência um conjunto de simbolismos que facilmente se tornam transparentes. Coogler coloca-se, neste terceiro acto, numa prisão de sua própria criação: o showdown com a trupe de vampiros é inevitável e todo o imaginário vampiresco é colocado em tela (alhos, pedidos de entrada, e estacas). O resultado é uma resolução que parece interminável e um final triplo que confunde mais do que ilumina.

Hugo Dinis