Estreado na Quinzaine des cinéastes de Cannes, em 2023 (onde foi nomeado para o prémio Caméra d’Or), e com passagem na Competição Oficial do LEFFEST, no mesmo ano, Riddle of Fire (Enigma do Fogo) chega enfim às salas portuguesas. Captado em 16mm, o filme é uma instalação retro que remete para as aventuras infantis dos anos 70 e 80, tendo clara inspiração nas entradas de realizadores como Steven Spielberg e Richard Donner. O exercício nostálgico de Weston Razooli segue três crianças em busca da aventura perfeita. Um conto de fadas moderno que promete apelar a toda a família. Aqui ficam as críticas de dois tribunos.
Riddle of Fire é um coming of age encapuzado de conto de fadas, filmado em película kodak de 16mm, de tonalidades cromáticas primaveris, sendo um sedutor refresco para os dias quentes que se adivinham. A sua estética é banhada por uma luz dourada que evoca tanto o crepúsculo da infância quanto a aurora do mito. Chamemos-lhe um híbrido encantado, embebido numa atmosfera algo etérea e anacrónica, onde a infância é reencenada não tanto como um prelúdio para a vida adulta, mas como um reino próprio, a pulsar de leis e magias algo anárquicas, mas sempre desarmadas pela tão apetecível verdade poética. Weston Razooli pinta um quadro no qual três imponentes pré-adolescentes se armam em cavaleiros do asfalto, cujos motociclos carregam doses generosas de sarcasmo e ironia. A textura deste filme aproxima-se do sabor das gomas ao mesmo tempo que nos aleija como o pisar de um lego. Uma mãe doente e de cama, cujos filhos não sabem o que fazer nas férias do verão, é o mote para a odisseia na qual estas três crianças travessas são incitadas numa missão: procurar os ingredientes para confeccionar uma tarte de mirtilos especial de corrida, com vista a acalmar o estado febril da mãe. A pré-adolescência é só o tiro certeiro para que Razooli elabore uma fábula sobre a deriva do tempo e a forma como os mais novos passam actualmente os seus tempos livres. Riddle of Fire ora julga o proteccionismo e excesso de zelo relativamente à dependência digital, ora condena a libertinagem daqueles que se esmeram numa delinquência infanto-juvenil q.b. assustadora, mas que não mancha qualquer cadastro. Nesse labirinto simbólico, Riddle of Fire reconfigura a estrutura do conto de fadas clássico: há uma missão, há um obstáculo, há metamorfoses (ainda que interiores), e há um encantamento que paira sobre tudo — não o tipo de encantamento que se desfaz no final, mas aquele que permanece, como um sussurro. Ao contrário da moral didáctica de muitos filmes do género, aqui não há uma lição explícita, mas sim uma iniciação. As crianças enfrentam perigos, sim, mas sobretudo atravessam uma fronteira: entre o saber e o mistério, entre o jogo e o ritual, entre o controlo e a entrega. Razooli filma como quem invoca uma memória colectiva do que é ser criança, embalando-a numa banda sonora que mistura folk e sintetizadores analógicos. A floresta onde se passa boa parte da jornada não é apenas um cenário, mas sim uma personagem viva, ora acolhedora, ora hostil, mas sempre ambígua. No fim, Riddle of Fire não é apenas um coming of age. É sobretudo uma alegoria de um rito de passagem que não se completa, e talvez nem precise. Porque o filme não busca resolver o enigma do fogo (como o título sugere), mas sim preservá-lo e mantê-lo aceso na forma de um olhar infantil sobre o mundo, um olhar que reconhece o mistério como parte essencial da existência.
Rita Cadima de Oliveira
Riddle of Fire contrapõe as tendências mais recentes do cinema independente americano com um impulso de infantilidade assinalável. A primeira longa de Weston Razooli é, em primeiro lugar, uma homenagem ao cinema de aventura juvenil que marcou Hollywood durante a primeira metade dos anos 80, com clássicos como The Goonies, E.T., ou Gremlins. A necessidade de se dirigir a um público infanto-juvenil em emergência no contexto do conservadorismo Reaganista colocou no grande ecrã um discurso narrativo centrado na emancipação dos jovens usando o veículo do fantástico. Razooli propõe prosseguir essa visão tentando conciliar esta juventude com um público mais necessariamente adulto, num contexto cinematográfico mais marvelizado. Riddle of Fire segue as aventuras de um grupo de três amigos pré-adolescentes em busca da tarde perfeita, a jogar uma consola enigmática apropriadamente intitulada de Otomo Angel. Não obstante a imediata preponderância conferida aos três jovens, o que imediatamente salta à vista em Riddle of Fire é a sua forma. Impecavelmente filmado em fita de 16 milímetros da Kodak, Razooli faz encher a tela com a imensa floresta do estado de Utah, beijada por uma saturação de imagem desenhada para convocar um sentido de misticismo inerente à história. Mas Razooli também faz questão de colocar em evidência a irreverência da sua forma por meio de intertítulos esotéricos a apresentar personagens e locais, bem como uma castiça legendagem às falas do protagonista mais jovem, Jodie (Skyler Peters).
A sequência introdutória coloca-nos de imediato no pequeno grande mundo destes miúdos, num destemido assalto aos armazéns da Otomo. Os três desdobram-se em recursos aparentemente intermináveis para enganar os adultos e regressar a casa com o novo jogo. Do ponto de vista narrativo, o melhor trabalho de Razooli aparece sobretudo nestas cenas que envolvem as três, mais tarde quatro, crianças: Alice (Phoebe Ferro) é forte e independente, procurando sempre liderar a pandilha em alternância com Hazel (Charlie Stover), mais ousado e irresponsável, mas fiel ao esprit de corps do trio, que por sua vez vê em Jodie uma espécie de cola voluntariosa. O cruzamento destas crianças com o mundo dos adultos coloca um entrave fundamental a Razooli, dividido entre a vontade de retratar crianças precoces e a realidade de ter adultos a escreverem falas adultas para crianças reproduzirem. Esta dificuldade torna-se mais aparente nas limitações de Riddle of Fire. Por um lado, as suas tentativas de humor servem mais para sinalizar a ideia de algo engraçado do que de facto para produzir construções cómicas. Por outro, o actual panorama de cinema independente parece estar maioritariamente populado por cineastas profundamente reverentes dos seus mestres, e este Riddle of Fire está, assim, intimamente endividado aos ensinamentos de Spielberg ou Donner. Razooli não tem a mesma leveza de mão para conduzir uma trama que se faça levitar de cena em cena em permanente movimento e isso não deverá ser usado contra ele, particularmente na sua primeira longa. Mas Riddle of Fire precisava necessariamente de maior naturalidade na sua construção. A trama é envolvente mas não tarda muito em arrastar-se, perdendo dinamismo e força propulsora, por vezes em detrimento de construção de personagens, mas sobretudo em busca de momentos de real comunhão de sentimentos, que tardam em surgir e, quando sucedem, perdem impacto.
Hugo Dinis