Queer, o mais recente filme de Luca Guadagnino (Call Me by Your Name, Challengers, Bones and All, …), é uma adaptação da obra homónima de William S. Burroughs, um relato romanceado da sua vida de expatriado na Cidade do México. Apresentado na Mostra de Veneza em Setembro de 2024, o filme, protagonizado por Daniel Craig (nomeado para o Óscar de Melhor Actor) e Drew Starkie, e com argumento de Justin Kuritzkes (Challengers), continua sem data de estreia prevista em Portugal – apesar do reconhecimento internacional do realizador, e apesar de ter já estreado um pouco por todo o lado. Quatro tribunos viram o filme e partilham a sua crítica.
“In the sun I feel as one“. O último filme de Luca Guadagnino começa com o cover de Sinead O’Connor de All Apologies dos Nirvana. Não seria a única faixa de Cobain em Queer, mas All Apologies, ostensivamente uma música que reflecte sobre as dificuldades de envelhecer sob o espectro dos erros do passado, marca o tom de uma adaptação de William S. Burroughs em torno dos temas da solidão no contexto do mundo pós-moderno. Para Guadagnino, esta abordagem já nem sequer é nova e surge como contraponto directo aos triângulos amorosos de Challengers. Queer coloca o foco na relação entre dois expats americanos numa Cidade do México profundamente marcada por uma estetização confabulada por CGI e design de produção saturado para criar um mundo mágico e febril, mas sobretudo estrangeiro. Nesse aspecto, é impossível não criar o paralelismo entre este Queer e a outra grande adaptação de Hollywood à obra de Burroughs, Naked Lunch de Cronenberg. Quer o filme de Guadagnino quer o de Cronenberg apostam nesta construção de uma cidade marcada pelo rocambolesco do forasteirismo que a experiência do emigrante americano encerra. Mas enquanto Cronenberg lança mais claramente o seu olhar nas dores da produção criativa sob as pressões culturais e sociais, Guadagnino tem um só foco singular que acaba por enjaular a sua Cidade do México: a exploração da solidão. Lee (Daniel Craig) vive uma vida diletante neste contexto lânguido, de encontro em encontro sexual e de garrafa em garrafa, na procura de uma ligação emocional. O seu contacto com locais e sobretudo outros expats é marcado pelo desligamento pós-moderno com que Burroughs via a construção comunitária contemporânea. É disso exemplo a sua ligação fugaz com a personagem de Jason Schwartzman, alguém que vive igualmente nessa procura de empatia num mundo que lhe é estrangeiro, mas que, ao contrário de Lee, está disposto a correr todo o tipo de riscos para quebrar a rotina. Essa letargia é interrompida pelo aparecimento de Allerton (Drew Starkey), um ex-soldado que vai mantendo uma distância insuportável para Lee. A relação entre os dois é permanentemente marcada pela divisão de motivos, na profundeza enigmática de Allerton, e na necessidade de ligação de Lee. O cinema de Guadagnino é tão mais forte quanto é o trabalho dos seus colaboradores, e para essa examinação da distância entre Lee e Allerton muito contribui a banda sonora dissonante e reflexiva de Trent Reznor e Atticus Ross, bem como a cinematografia de Sayombhu Mukdeeprom, encerrada em si mesma sob o signo da Cidade do México dos outsiders. É nessa mescla de contribuições para a exploração de temas do íntimo que Queer acaba por se provar muito mais próximo de Bones and All do que do impalatável Challengers, não na sua promessa de carga sexual mas na ideação do amor não-correspondido enquanto forma de vida.
Hugo Dinis
Os amores de Narciso. Promenade sexual por uma cidade de cartão, pintada a cores de pastel e dias de sol. Eugene (Drew Starkie), efígie do desejo de Lee (Daniel Craig), nasce pelas ruas, qual obra muda da solidão do escritor, e durante o seu primeiro capítulo, Queer é Querelle informado por Wes Anderson (ou simplesmente “Wes Anderson with cocks”, porque, por tantos fluidos que o filme descreva – imagem e som -, Guadagnino nunca evoca a violência que carrega o filme de Fassbinder). Ainda que sem grande propósito narrativo, algo inconstante no ritmo ou na gramática, e frequentemente apressado na edição – como que revelando a nervosidade de Lee, é certo – o filme é sempre mais interessante enquanto retrato desse México fabulado pelo protagonista. Enclave colonialista entre homens de um mesmo sexo, revestido pela estética sempre juvenil de Guadagnino (Un Chant d’Amour trajado por JW Anderson, ao som de Nirvana), lugar de confortos fugazes, onde um amor fugidio parece espreitar a cada esquina, numa récita sempre embalada pelo álcool, ópio, e muita tesão – What else could I say? Everyone is gay.
A faceta mais relevante de Guadagnino sempre foram os seus ensaios um pouco ingénuos de “não-academicismo”, mas o seu trabalho é habitualmente demasiado intencional para que esses missteps cinematográficos, ainda que cada vez mais fortes (porque cada vez mais malucos), possam de facto funcionar. Em Queer, não convém o facto de, ao deixarmos a cidade (capítulo 2), passarmos tanto tempo numa nova escapadela muito ao jeito de Call Me By Your Name tardio. Pequena novela queer-pulp, nessa sua segunda metade, a artificialidade e humor que fortalecem o primeiro capítulo como que colapsam numa quase paródia involuntária. Guadagnino, para todos os efeitos, parece funcionar melhor em geografias mais conscritas, e pelas suas imagens de então, o filme tem muito maior dificuldade em enquadrar a subjetividade do relato. A paisagem passa de artificial a mais imediatamente falsa, e a comédia do trecho, na cabana dos Potter, não ajuda, por dialogar tão mal com o tom mais nuanceado do resto do filme – passamos de um pathétique ao quase slapstick, nisso perdendo muito da profundidade psicológica da acção. Guadagnino parece remediar essa dita superficialidade com a “trip” final na selva nocturna – uma quase coreografia, onde os dois corpos se verão definitivamente enleados pelo efeito do yagé. Eugene desaparecerá pouco depois, quase como chegara, sem traço e sem propósito definitivo na introspecção de Lee. Mas o que certamente se imaginou como sendo o paroxismo sentimental e sensual (dois conceitos que Guadagnino sistematicamente confunde) da narrativa, tem aqui um efeito algo episódico, demasiadamente tímido na duração completa do filme.
Mais curioso será, então, o epílogo que, depois de um salto salutarmente ridículo e inesperado, arrasta de novo os pés pelas ruas e lugares que preencheram a primeira metade do filme. Guadagnino parece não saber como terminar a sua viagem, e decide então seguir por uma inusitada citação à “maior” viagem da história do cinema. Nem tudo funciona – ou melhor, pouco funciona – mas a estranheza desse desenlace acaba por servir o desequilíbrio do melhor do filme. O cinema de Guadagnino nunca primou pela sinceridade, mas é quando mais forçado, e quanto menos assente em ideias sensatas, que o realizador parece, enfim, revelar um coração (por tanto que menos elegante ou mais frágil, aqui quase escatológico – mas em tudo mais singular).
Miguel Allen
Luca Guadagnino consegue ser equitativamente explícito e implícito ao explorar a marginalidade e os traumas do passado de um homem queer, Lee (Daniel Craig), cujos prazeres e ambições se alimentam de romances tórridos e frugais, despertando a sua homossexualidade em cenários dantescos de álcool e drogas. Alienado pelos vícios, Lee procura assumir-se sem culpas num mundo de crescente liberdade sexual, mesmo que o pudor e o desconforto com a sua condição partam da sua própria pele. É ao restabelecer-se fisicamente com homens mais novos, em relações efémeras, que Queer se torna numa incursão pela emancipação sexual tardia de um homem de meia-idade, que foge de uma América intolerante e hostil ao amor pelo mesmo sexo, para um México menos intransigente, mais espiritual e festivo. Guadagnino faz sempre a proeza de criar uma densa e complexa tensão psicológica, fundindo temáticas sexuais a um erotismo proeminente, resultando por vezes em cenários demasiado perversos. Queer assume-se como uma provocação objectiva ao preconceito instalado nos anos 50, em relação à homossexualidade, vangloriando-se na sua inegável sensualidade, mas também confrontando a hipocrisia de quem disfarçava a sua orientação, ou procurava a sua cura recorrendo à adição. Na vergonha do escapar ou num escapar de vergonha, a maior condenação de Lee é a fuga aos outros e a fuga de si mesmo. E é assim que Luca Guadagnino converte os relacionamentos e flirts em excessos, acrescentando sempre uma carga altamente tóxica a qualquer vínculo que Lee estabeleça. Nem os elementos e amuletos simbólicos que são acrescentados à acção surtem qualquer tentativa de a tornar mais mística ou obscura, apenas a tornam mais vã, num filme com meia hora a mais, que se arrasta a um ritmo extremamente lento e com diálogos vagos e personagens vazias. É sofrível o parco esforço que se concedeu a tornar os cenários menos artificiais, eles que criam uma estética deplorável e pouco verídica, empobrecendo qualquer tentativa de atribuir um toque realístico a este México. Desejava-se uma dissertação mais natural e credível, com diálogos menos vagos e mais aprofundados nesta temática que lhe é tão querida. Apesar da magistralidade de Daniel Craig e da sua actuação exímia, todos os seus pares deixam muito a desejar, num elenco muito pouco à sua altura.
Rita Cadima de Oliveira
Evidente sequela espiritual do filme que deu a conhecer Guadagnino ao grande público (Call Me By Your Name), Queer é o ponto de rebuçado da carreira do realizador enquanto autor confiante e seguro da sua arte. Longe do imediatismo juvenil de Challengers, Queer apresenta-se como uma versão mais madura de Call Me. Novamente um romance homossexual entre dois homens de idades diferentes, mas libertos da ingenuidade do filme anterior. Provocatório, claro, numa atmosfera de estúdio plastificada, mas curiosamente surrealista (vem à cabeça “A Persistência da Memória“, de Dalí). O cenário apresenta-se como a cidade do México nos anos 50, uma espécie de Stranger in a Strange Land, com um Daniel Craig soberbo (a poder, uma raridade, ser actor!), caminhando pelas ruelas quentes da cidade e frequentando as festas junto da comunidade americana. A primeira metade do filme, construída com personalidade, produz um certo fascínio sensorial que mergulha de cabeça, na segunda metade, na experiência onírica, surrealista e descomprometida (com muitas substâncias psicotrópicas à mistura) que pretende ser. Em formato semi episódico, o realizador vai desfiando ideias e construindo imagens: motéis, selva, cafés – vermelho, verde, azul. Ainda assim, é essa espécie de orgulho exibicionista que acaba por manchar Queer. Saltitando de situação em situação, imprimindo imagens de planos longos e parco diálogo, o filme tem dificuldade em encontrar o seu desenlace após 136 minutos que poderiam ter sido encurtados. O final parece querer acreditar que Lee, o protagonista, é uma personagem densa o suficiente para ser observada no leito de morte, mas não será aí que está o maior mérito de Queer. Nem 8 nem 80.
David Bernardino