Prémio Méliès d’Argent – Melhor Longa Europeia no 18º Motelx (2024), Oddity (“Visão Sinistra“), segunda longa metragem do irlandês Damian Mc Carthy (Caveat) estreou finalmente nas salas portuguesas. Relembramos a crítica ao filme por cinco tribunos.
Darcy e Dani são duas irmãs gémeas com vidas bastante distintas mas com uma grande e forte ligação emocional. Uma é casada, a outra é solteira, cega e medium. Numa vida em que quase tudo as distancia, só a cumplicidade as aproxima. Após o assassinato brutal de Dani na casa senhorial e recondita onde se preparava, com o marido, para viver, Darcy inicia uma odisseia para encontrar os responsáveis pela morte da irmã, recorrendo ao folclore e ao oculto, como instrumentos de vingança. Os objectos assombrados que utiliza têm a forma de um baú de madeira que contém uma figura de escala humana também de madeira. Damian McCarthy não coloca na sala um elefante, mas sim um homem de madeira, de aspecto aterrador, numa feição representativa de um grito ininterrupto e faz com que todas as personagens se apercebam disso. Esta figura não está escondida. Está ali, sentada onde toda a gente a vê. E toda a audiência pergunta quando é que aquela coisa vai deixar de ser um horror contido e passivo para se levantar e nos fazer perder o fôlego. Apesar da sua estrutura tímida e modesta, Oddity exalta rapidez, como filme límpido, inteligente e assertivo que é. Somos constantemente sacudidos pelo design de som, num pavor constante, de inevitabilidade do mal e do susto. A sua veia de jump scare, apesar de tão previsível quanto imprevisível, é simples e eficaz, criando uma atmosfera, estilo e horror sorrateiros. Há sustos legítimos que funcionam graças à constante construção, tensão e arte que o elenco nos proporciona, pela mão segura de um sólido realizador e por uma boa interpretação de Carolyn Bracken, que hiptoniza o mais céptico e descrente.
Rita Cadima de Oliveira
Um dos filmes sensação do terror de 2024, o irlandês Oddity é um slow burn carregado de camadas. O realizador Damian Mc Carthy dá uma masterclass de suspense de localização, atribuindo à casa onde ocorreu um misterioso assassinato alma própria através de vários objectos que nela se incorporam. Cabe à irmã gémea da falecida procurar descobrir a verdade através dos poderes de médium que afirma ter. Num primeiro momento Oddity parece ser só mais um bom slow burn, mas à medida que desenrola o novelo do seu argumento e move as suas curiosidades pela casa (aplauso para o sinitro boneco de madeira em tamanho humano real) a percepção de que estamos perante um relógio suíço fílmico é inegável. Até que infelizmente se parte… A decisão narrativa que, a certo momento, elimina o mistério da trama, é uma verdadeira tragédia difícil de entender. É como se o realizador deliberadamente escolhesse matar o seu filme. Ainda assim Oddity aguenta-se até ao fim, esboçando um sorriso. Fica a mágoa daquilo que poderia ter sido uma obra-prima.
David Bernardino
A momentos, trata-se de um exercício de terror quase de câmara, num filme de escala modesta, tanto a nível narrativo como na sua produção – e nisso longe dessa agressividade sócio-comercial do cinema gentrificado (dito elevated) contemporâneo. A “lista de compras” de Oddity é, ainda assim, particularmente longa. Por efeito dos nossos tempos, temos aqui a casa isolada no campo, o asilo assustador de aparência vintage, as duas gémeas, a mulher duplicada, a médium invisual, um falso culpado, um fantasma, um mostrengo, um assassino, e um autêntico psicopata. E isto sem falar dos objectos curiosos e importantes que vão enriquecendo pontualmente a trama. Mas se forçosamente inconcludente quanto às suas numerosas sugestões narrativas – o melhor exemplo sendo, claro, a titular figura em madeira, que se reposa durante uma hora em cena, sem que saibamos bem porquê – e apesar do evidente esforço do qual parece sempre necessitar para ir de um ponto A ao ponto B, Oddity interessa-nos pelo seu valor mais “concreto”, ao operar a gramática do género de uma forma salutarmente simples, enquanto revela uma sincera curiosidade formal, e nisso psicológica, pelas coisas que dispõe em cena. A arquitectura daquela wrong house oferece ao filme o campo necessário para conter essa sua trama profusa. Já a involuntária assepsia material (textural?) das imagens é pouco sedutora – nas palavras de Dani (essa protagonista eliminada nos primeiros minutos do filme – sim, como naquele outro clássico), como pode, efectivamente, um fantasma habitar aqueles espaços renovados ?
Miguel Allen
Oddity é uma verdadeira lição de como contar uma história de fantasmas — tensa, arrepiante, e com uma atmosfera que goteja puro horror, daquele que nos parece abrir um vazio no estômago. Desde a excelente cena inicial, que nos agarra com uma sensação de desconforto e incerteza, que percebemos ao que vamos. Uma montanha-russa de pouco mais de hora e meia, rápida e eficaz, que faz os nós dos dedos ficarem brancos de tanto nos agarrarmos ao assento. Oddity é incrivelmente eficiente na boa velha arte de pregar sustos. Sim, recorre aos famigerados “jump scares”, mas fá-lo com uma mestria rara. A atmosfera pesada e opressiva mantém-nos em alerta constante, o que faz com que cada susto funcione de forma genuína, sem parecer um truque barato. O toque de folk horror — ainda que não seja explorado em todo o seu potencial — acrescenta uma camada intrigante que diferencia Oddity de outros filmes sobre casas isoladas e fantasmas vingativos. Há algo de simples, mas incrivelmente eficaz, no conceito e no cenário: uma médium cega, um hospital delapidado para criminosos mentalmente instáveis, e uma casa isolada no meio do nada. Remete para algo do cinema italiano de terror, embora de uma forma bastante mais downplayed e sem os exageros a que esse género nos habituou. A cinematografia é perfeita para o que o filme se propõe a fazer – assustar – e preenche a casa de presságios gelados, de espaços vazios nos quais o nosso olhar assenta e parece ver coisas que não estão lá. Ou estarão? Por outro lado, Oddity tropeça ao deixar subdesenvolvida a mitologia em torno dos elementos mais intrigantes, como o sinistro golem de madeira que ganha destaque no enredo. Esculpido com traços de sofrimento, o golem torna-se uma presença constante e perturbadora, mas a sua origem e propósito permanecem desconfortavelmente vagos. A conclusão do filme também não foi inteiramente satisfatória e teve elementos algo cliché, infelizmente com ecos da vida real. A falta de profundidade nas personagens acaba por diluir o impacto emocional que o filme tenta alcançar. Mas, se o objetivo for apenas sentir aquele arrepio na espinha e berrar um ou outro impropério, Oddity cumpre com distinção. É um daqueles filmes para ver de luzes apagadas, e talvez, só talvez, deixar uma luz de presença acesa antes de ir dormir.
Carla Rodrigues
Quem se focar maioritariamente no aspeto narrativo de Oddity terá um valente dissabor. Talvez por demasiada autoconsciência da simplicidade da história em mãos, James Mc Carthy procura camuflá-la, tanto quanto pode, numa profusão de elementos de género, diferentes imaginários e muitos objetos-símbolo, de modo a forçar um mistério que não saberá suster de forma equilibrada. O ritmo do filme ressente-se com uma revelação demasiado escancarada a meio, à qual se segue uma segunda parte necessariamente apressada e com menos interesse. E contudo, no meio de todos esses pecados de guião, há algo de muito estimulante a acontecer a nível artesanal. No fundo, o caminho que a história segue pouco importa neste laboratório de sensações onde o cineasta nos coloca, sabendo muito bem como dispor os elementos (seja a arquitetura da casa de campo, sejam os objetos da loja de curiosidades, seja a escuridão), para onde apontar a câmara e como gerir a montagem para atingir efeitos muito concretos (encontramos aqui alguns dos melhores e mais “elegantes” jump scares de que há memória em muito tempo). Será forçosamente um filme de momentos, mas a sua economia espacial e visual, a concentração da ação em poucos sets e a precisão técnica fogem habilmente ao espalhafato intrusivo que encontramos na maioria dos projetos de terror da atualidade e mantêm-nos presos durante toda a duração.
Gil Gonçalves