Críticas a Miséricorde, de Alain Guiraudie

EquipaAbril 2, 2025

Um desaparecimento misterioso, um vizinho ameaçador e um abade com intenções estranhas – Jérémie regressa a Saint-Martial para o funeral do seu antigo patrão, o padeiro da vila. Apresentado no Festival de Cannes de 2024, Miséricorde, o mais recente filme de Alain Guiraudie, estreou enfim em Portugal. O filme, que ficou no primeiro lugar da lista dos “melhores do ano” (2024) para os Cahiers du Cinéma, é co-produzido pela Rosa Filmes (Joaquim Sapinho e Marta Vieira Alves). Três críticos da Tribuna foram vê-lo.

 

Mœurs de province, trilhos cruzados pela paisagem amorosa de uma região. O vislumbre do abismo, numa fábula bem-humorada sobre desejo carnal. Miséricorde será um simples noir, apaixonado pelas sombras e bruma daquela província francesa, sempre dividido entre os falsos arquétipos de um pequeno burgo e o quase misticismo da insondável floresta, lugar de segredos mortais e libertinagem. Mas no contexto algo “desorientado” (ou disperso) do cinema contemporâneo, um filme que encontra (enfim!) um valor cinematográfico essencial e autêntico na exploração do seu conteúdo narrativo. E se evoca Hitchcock e Chabrol, o filme constitui sobretudo o desenvolvimento de inúmeras pistas da obra cinematográfica de Guiraudie (o corpo masculino, o sexo, o crime, a repetição, …). Uma leitura íntima daquela terra, forte de um ambivalente valor originário — a história de um “retornado” a um lugar que nunca fora exatamente o seu — , que sugere talvez a caricatura, mas evoca, a cada plano, a visão poética e pessoal, intrínseca ao seu autor. Um filme revelador, porque sempre orientado sobre esse objecto obscuro, o desejo – e a morte.

Miguel Allen

 

O retorno à ruralidade no cinema de Alain Guiraudie marca a ligação com a essência da solidão. Com o regresso de Jérémie (Félix Kysyl) à sua vila natal a propósito da morte do seu antigo patrão na padaria local, Guiraudie subverte as expectativas de introspecção forasteira em prol de uma visão do isolamento rural mais silenciosamente angustiada que melancólica. No centro da sua trama estão sobretudo as ligações que Jérémie cultiva na sua estadia. Guiraudie coloca a ambiguidade dos seus motivos ao serviço não apenas de um enredo motivado pela tensão criminal, endividada às representações da Bretanha de Chabrol ou da “Old England” de Hitchcock, mas sobretudo sob o pano de fundo de uma sátira sexual que entrega a moralidade ao profundo das conveniências de cada um. Este contexto bucólico também entrega a Miséricorde uma forma não de devolver um refúgio para os encontros amorosos das personagens, mas de projectar violência em vez de desejo na longa encosta da floresta francesa. Jérémie é simultaneamente o grande ponto de discórdia da vila, bem como o catalisador de pulsões de desespero na face da solidão: o amigo de infância, Vincent (Jean-Baptiste Durand), anseia pelo regresso das conneries das juventudes dos dois, enquanto o acusa de querer manter uma relação com Martine (Catherine Frot), a sua mãe recém-enviuvada; o vizinho Walter (David Ayala) aparenta ter aceite o seu isolamento, mas cedo se vê a encobrir as sessões de pastis com Jérémie; mas Guiraudie vê no padre da vila (Jacques Develay) a cristalização última do desejo que tantas vezes se liga ao desespero da solidão. Jérémie encerra em si um signo para todos os anseios de ligação dos habitantes daquela pequena vila. Os desejos destas personagens também mostram a facilidade com que o humano se transforma em desumano na face do desespero. Para a personagem de Develay, o descontentamento é uma condição de vida tão inescapável como os constrangimentos da batina. Estas duas dimensões cruzam-se numa cena a evocar I Confess, de Hitchcock, em que a racionalização do desespero mancha a moralidade do eclesiástico. Mas ao invés de escolher a contemplação moral, Guiraudie torna a corrupção o estado natural do ser humano. Uma mão dada ao diabo para escapar à impiedade da solidão.

Hugo Dinis

 

Alain Guiraudie não traz um elefante para a sala, mas sim um lobo para o campo. Miséricorde tem uma névoa tão densa que toda a sua profundidade é manchada pelas camadas de ambiguidade na qual se vai construindo. Um padeiro morto, a sua viúva, o seu filho, um ex-empregado, um vizinho e o padre da aldeia constituem o hexágono da fatalidade campestre, da culpa, da falsa modéstia e do obscurantismo que os acompanha. Guiraudie não é claro nem pretende ser, a sua subjectividade é tão sinistra que quase parece intencional. Recorrendo ao sarcasmo, faz de Miséricorde um deboche completo, criando uma sátira que ridiculariza o conservadorismo aldeão e a sua identidade retrógrada, equivocando-nos com falsas pretensões e ambivalências argumentativas. A todo o lado rural, e à ausência de mácula que o personifica, anexa-se uma contagem de confissões pessoais, exacerbadas pelo desejo carnal que floresce numa despudorada toma de Pastis, e assim, ao ritmo desta libertinagem rocambolesca, Guiraudie acaba por ser objectivamente provocador e desafiador. É na desonra grupal que reside todo este nevoeiro pessoal e ao invés de uma análise pessoal a cada membro deste sexteto, é no julgamento global onde pairam as nossas próprias expectativas relativamente aos homens de fé, à integridade de uma classe aparentemente trabalhadora e à integridade humana no luto. As irregularidades da história de Guiraudie podem causar distúrbios e ataques de riso na plateia, mas causam mais estranheza e choque pelo artificialismo com que parecem ser elaboradas, de uma forma propositada, mas nunca óbvia. E é neste surrealismo rústico, em contraponto com uma estética de brumas e sombras, que Miséricorde se vai tornando numa encruzilhada inacessível mas que nos agarra e apalpa até ao fim e sem qualquer decoro.

Rita Cadima de Oliveira