Críticas a Mickey 17, de Bong Joon-ho

EquipaMarço 13, 2025

Nova incursão de Bong Joon-Ho na ficção científica (ou “comentário social por via de”), e primeira longa-metragem do realizador desde a aclamação mundial com Parasite (Óscar de Melhor Filme em 2020). Mickey 17 é uma adaptação de Mickey7, de Edward Ashton. O filme, que conta com Robert Pattinson vezes dois, Mark Ruffalo e Toni Collette, já foi visto pela maioria da Tribuna. Cinco críticos partilham a sua opinião.

 

Os filmes em inglês de Bong Joon-Ho sempre me pareceram um pouco desalinhados. Tanto Snowpiercer como Okja têm um certo foguetório high concept que contraria a abordagem mais focada nos personagens que caracteriza as obras coreanas de Bong. Mas Mickey 17 pode ser o que chega mais perto de acertar no ponto, no que às longas em inglês diz respeito. É um filme parecido com o seu protagonista: desajeitado, imperfeito e um pouco destrambelhado, mas estranhamente cativante.

Mickey Barnes (Robert Pattinson), um azarado que caiu nas más graças de um agiota, inscreve-se para uma missão espacial de maneira a escapar da Terra. Como parece ser um tipo sem grandes habilidades, não tem escolha senão inscrever-se como “descartável” – ou seja, fica sujeito a levar a cabo tarefas arriscadas que mais ninguém quer. Estas levam-no a um crescendo de inevitáveis mortes, mas um descartável nunca descansa em paz: após morrer, Mickey é “reimpresso” para dar seguimento às suas funções. E assim chegamos a Mickey 17, a sua décima sétima versão. Pattinson abraça este personagem loser com uma voz adoravelmente pateta e uma boa compreensão da fisicalidade de alguém igualmente pateta. Nas mãos de Pattinson, Mickey torna-se um personagem simpático, resignado à sua sorte de forma desarmante, até ser forçado a ganhar uma espinha dorsal. Sendo certo que muitas das suas mortes são cómicas, elas acabam por trazer uma pontada de tristeza à medida que o vamos conhecendo melhor.

Outros pequenos momentos cómicos – como os soluços da impressora quando imprime outro Mickey; a atitude desinteressada e incompetente dos cientistas na nave; a obsessão de Toni Collette por molhos – ajudam a manter um tom brincalhão mesmo face a temas mais densos. Entre estes, já habituais no cinema de Bong, contamos o capitalismo, a diferença de classes, a colonização e o ambientalismo, sendo que depois entram outros, tais como a ética na clonagem de seres humanos. Contudo, Mickey 17 não os aborda com a mesma subtileza e acuidade que é habitual nos seus filmes em língua coreana.  É maior e mais espalhafatoso do que, por exemplo, Parasite; e a anos luz do maravilhoso Memories of Murder. Por vezes, é mais parecido com Okja em termos de tom – um pouco desorganizado e muito mais (talvez um pouco dolorosamente) óbvio na sua mensagem. Mas consegue equilibrar melhor do que Okja a sua veia mais séria e o tom goofy.

Outra das grandes desvantagens de Mickey 17 é a falta de desenvolvimento dos personagens que não Mickey. Embora consigamos perceber muito bem quem é Mickey 17 – tonto, bem-intencionado e, embora resignado, completamente fora da sua zona de conforto – não se pode dizer o mesmo do resto do elenco. Timo, o amigo de Mickey, não passa de um idiota oportunista, com Steven Yeun a ser desperdiçado no papel. Ruffalo e Collette são engraçados e mastigam bem o cenário, mas os seus personagens são essencialmente caricaturas com pouca profundidade. O interesse amoroso de Mickey em todas as suas versões, Nasha, oferece um bom contraponto à natureza desajeitada do nosso “descartável”, mas também beneficiaria de uma olhadela mais próxima à sua personalidade e às suas lealdades. Em suma, há um malabarismo entre demasiados personagens, com muitos deles subaproveitados ou mesmo postos de lado até serem necessários para um dispositivo narrativo qualquer – como a construção de uma máquina de tradução ou a fervura de uma chávena de chá. O filme também não se esforça para explicar as mudanças de lealdade de grande parte da tripulação da nave, o que faz com que alguns desenvolvimentos percam impacto e plausibilidade.

Mas, apesar dessas – e outras – falhas, Mickey 17 não deixa de ser divertido. Bong não perdeu a capacidade de contar histórias humanas, mesmo com uma certa dose de excentricidade à mistura. Pode ser desorganizado e um pouco inconsistente, mas há algo aqui que funciona – graças ao humor, ou talvez ao coração. Não é, de todo, o filme mais refinado no catálogo de Bong, mas, tal como o próprio Mickey, é dono de um carisma peculiar ao qual é difícil resistir.

   Carla Rodrigues

 

Mickey 17 tem de ser encarado como produto de um contexto. No seguimento de Parasite e Snowpiercer, a crítica social ao capitalismo no mundo de Bong Joon Ho tornou-se moda às mãos de realizadores ocidentais de mão mais desastrada, por entre The Menus e Triangles of Sadness. Mickey 17 surge inspirado na criação literária de Edward Ashton, aí com maior foco na componente de ficção científica por meio da problemática da construção de pontes entre seres humanos e extraterrestres. O caminho de desumanização do trabalhador operado pelo rumo do capitalismo convoca esta noção de pessoa descartável, que Mickey explora. Alguém cujo propósito na vida é trabalho, e cuja missão é assumir a invulnerabilidade na face das tarefas mais perigosas. Mas para Mickey, a sua invulnerabilidade é simultaneamente a sua maldição. A cada reencarnação diminui o valor de cada vida de Mickey: a prova disso é a cena de abertura na qual Timo, o seu melhor amigo, se recusa a arriscar numa missão de salvamento a Mickey. Mas Bong, na sua pulsão maximalista, procura ver em Mickey 17 a oportunidade de criar um ambiente político marcado pelo contexto actual, o que motiva as obsessões centrais das personagens de Mark Ruffalo pela glória da colonização, e da de Toni Collette pelo luxo da posição no topo da hierarquia.

A partir daqui, estes elementos conjugam-se de forma relativamente natural para criar uma narrativa de inspiração humanista e sátira política. A uma performance extravagante de Ruffalo e Collette é contraposta a representação repartida de Robert Pattinson, dividido entre um homem resignado e dado à autofagia (na sombra de um episódio de infância) e outro irascível e volátil. Este duplo plano entre uma humanidade em estado de desespero face ao estado do seu planeta caseiro em fuga colonizadora sob o jugo de um lider absurdo e megalómano, e a necessidade mais elementar de comunicação entre povos, leva a uma oportunidade para Bong dar largas à sua imaginação hollywoodesca: não só a humanidade recupera o seu cariz solidário como o faz sob a ameaça de um momento vital. É este o Bong ocidental de Snowpiercer e Okja. Mas também é este o Bong com dificuldades em enquadrar a sua própria repulsa pela indústria americana: por vários momentos sentimos o efeito de uma montagem discutida e discutível, com cenas de diálogo e exposição visual a serem descartadas em prol de uma voz off omnipresente de Pattinson. Mas este hiperfoco em Pattinson também não consegue colocar o ónus na precariedade da sua existência. Se a existência de um Mickey diminui o valor da vida de cada um deles, a existência de dois Mickeys vem reforçá-lo: a morte de qualquer um dos Mickeys representa agora uma nova finalidade para ambos. Mickey descarta a sua própria descartabilidade por engano, mas reforça-a por meio do sacrifício altruísta e desinteressado. A humanidade segundo Bong.

    Hugo Dinis

 

Um pouco como Poor Things, que nos chegara com o sabor de um Barbie para “pessoas inteligentes”, Mickey 17 parece sugerir um Poor Things ainda mais assertivo, mais forte no seu comentário perspicaz sobre a sociedade contemporânea. Falamos aqui de #latecapitalism, mais especificamente da nossa realidade socio-política, e da condição humana numa era de neo-ditaduras ocidentais. Para Bong Joon Ho, que anteriormente explicara à Academia de Hollywood que “os ricos são maus”, trata-se de um abrangente fresco político desse agora, a partir de um formato de cinema de génese popular. Uma ficção científica muito silly (mas com lamentável pouca graça) teremos um pouco de Dr. Strangelove, que informará a sátira, um pouco de Östlund, que dará o mote à caricatura (e daí a um gosto pelo escatológico, ainda que refreado neste caso), ou um pouco de Nausicaä para o contexto e fauna extraterrestres, e a necessária mensagem ecológica. E teremos, sobretudo, muito (e sempre em demasia) Mark Ruffalo, muito inchado e cheio de si, mas de um jeito tão pueril. Uma iteração obstinada e penosamente insistente de Donald Trump, tão intratável quanto o seu modelo, talvez, mas seguramente mais idiota, e por isso politicamente neutralizada – tudo o que se refere (e não é pouco) ao seu Kenneth Marshall é lixo, com Toni Collette no mesmo saco. Já Pattinson, que não seria a escolha “ideal” para o duplo Mickey (17 e 18…), tão próximo do slapstick, faz o que pode para valorizar o curso de um filme terrivelmente assoberbado pelo que nos pretende dizer. Mas, se nem tudo aqui é de facto mau, apetece relembrar que não nos vale um cinema que se enche dos mesmos propósitos e leituras simplistas com os quais somos diariamente bombardeados pelas redes sociais. Um “grande” filme, afinal tão televisivo pelo seu conteúdo, do qual pouco nos resta senão fugir enquanto “fanfarra” ainda o genérico pela tela. A dimensão (e pretensão) do cinema popular dos últimos meses cansa.

Miguel Allen

 

Os temas (os propósitos?) de Mickey 17 são evidentes: a crítica a um capitalismo que tudo come, à desumanização dos exploradores pelas mãos dos seus próprios exploradores, mas também pelos seus pares, a metáfora trumpiana e elonmuskiana rotundante que parece ter sido rodada num tempo em que ainda não se sabiam os resultados das últimas eleições americanas. Com efeito, Mark Ruffalo parece ter gostado de interpretar papéis de palhaço abalhofado e com trejeitos ridículos (Poor Things), que até funcionam e são divertidos (e aqui servem para pautar o tom do filme). No filme de Joon Ho, Ruffalo é um magnata que perdeu as eleições e a única coisa que lhe resta é a ida para o espaço e a colonização de um planeta gelado distante. A crítica do realizador, que tem sido tema recorrente em algum cinema pretensamente mais esclarecido, acaba por se consumir a si própria: um filme comercial americano de elevado orçamento destinado ao consumo doméstico, mas também à exportação para um mercado internacional aguçado pelo exotismo de Parasite (que até ganhou o Óscar em Los Angeles!). Foquemo-nos por isso naquilo que verdadeiramente importa: o filme! Mickey 17 vem na linha estética e temática directa de Snowpiercer, embora longe da sua individualidade e autenticidade. Sci-fi de comédia negra, com muita “mensagem” por trás, trapalhão, atabalhoado, decididamente com personalidade e alguma capacidade de entretenimento. A relação entre humanos e extraterrestres, por baixo de mais uma “mensagem” algo derivativa, consegue capturar uma certa essência série B desconcertante, invocando até o início de “Star Wars: O Império Contra Ataca” no manto branco e desagradável do planeta Hoth, o que vai permitindo a resistência ao sono num filme que não justifica as suas duas horas e um quarto. Além do boneco de Mark Ruffalo – e de Toni Collette diga-se em abono da verdade – pouco mais se retira deste filme de actores razoáveis, protagonizado por um Robert Pattinson algo desinspirado e ensosso. Enfim, o livro é grosso, mas aprende-se muito pouco aqui.

David Bernardino

 

Bong Joon Ho não se distingue dos demais, parecendo confuso em mais uma dissertação caricatural sobre a dupla do momento: Donald Trump e Elon Musk. Sem pudor, o realizador coreano entrega-se ao óbvio, num filme comercialmente lucrativo, cuja tentativa de apelar à tolerância, decência, diversidade e justiça, acaba por apenas reforçar a continuidade inabalável do período preguiçoso, descartável, patriarcal e militarista estabelecido. Sem almejar qualquer tentativa de se desviar do óbvio, Bong Joon Ho abraça Hollywood sem embaraço ou timidez, agregando de forma aleatória temáticas vigentes, dando um check numa clara lista de polémicas contemporâneas que foram encomendadas para construir um puzzle eticamente viável. Na tentativa de fazer apelo a uma sociedade mais plural, harmoniosa, de convivência mais sã e menos belicosa nesta era aparentemente sem rumo, Mickey 17 não se destaca, preocupando-se sobretudo em fabricar metáforas para a reprodução artificial humana e a exploração laboral, acabando por se tornar em mais um filme com armas apontadas à indústria de Hollywood, mas feito para ela. Ao fim e ao cabo, não pode ser descartado por completo, nem que seja pela sua alma insípida, aborrecida e ideologicamente presunçosa. Neste filme de anti-heróis, o seu contrassenso é ainda mais notório na abordagem anticolonialista que é vingada com uma renovada forma de colonização. Mas desta vez não faz mal porque os colonizadores são simpáticos, racializados e amigos dos animais. Numa tentativa de gesticulação política higienizada, o projecto de Joon Ho esquece-se que uma alegoria não pode existir somente ao nível da premissa. A mais do que pisada lengalenga de “somos todos descartáveis sob o domínio capitalista” não se trabalha recorrendo a caricaturas ocas nem ao desejo de encontrar alguém mais exímio e honroso para o legado. A espinha dorsal de Mickey 17 sofre fracturas pela repetição cobarde e aborrecida da ecopolítica de Okja, mas desta vez apoiada por uma espécie sensível cuja mensagem eco ambiental é comprometida pelo ódio e pela forma corriqueira de ridicularizar e responsabilizar duas personagens contemporâneas num mundo tão obsoleto e arcaico no que diz respeito à desvirtuação sociopolítica. A sátira é óbvia, mas nada de valor é acrescentado. Apesar do realizador coreano ter uma visão e um estilo próprios, dificilmente voltará a receber cheques chorudos de Hollywood.

Rita Cadima de Oliveira