Uma série de misteriosos assassínios/suicídios perpetrados por pais de família, ao longo de décadas, iludem qualquer explicação. A única coisa que os une são cartas com mensagens codificadas e a assinatura LONGLEGS. Neste horror thriller, que tem dado muito que falar devido à intensa e peculiar campanha de marketing, cabem muitos subgéneros e contam-se diversas influências de títulos sonantes. Mas será que dá passos maiores que as pernas? Três tribunos foram ver e deixam-nos agora as suas críticas a Longlegs, de Osgood Perkins.
Antes de falar do filme, falar do seu marketing. Um serial killer tão terrível e desconcertante cuja imagem não aparece sequer em nenhum material promocional. Há que ver o filme para ver esse Nicolas Cage em mais um grande momento, numa segunda fase apogeu da sua carreira, agora praticamente um actor de culto que deixou para trás as grandes produções como 60 Seconds, Con Air ou National Treasure. O grande elogio a este Longlegs terá que ser para ele, que se soube reinventar após pouco mais de uma década de filmes série B de qualidade duvidosa, mas que o actor defendia como profissional cujo maior prazer na vida é fazer filmes, sejam eles bons ou maus. Longlegs é talvez mais um dos pontos de destaque da sua carreira, pelas melhores razões. Osgood Perkins pega na scream queen Maika Monroe (It Follows, The Guest) e traz-nos uma versão modernizada do diálogo detective vs serial killer, tão próximo de Silence of the Lambs como de Zodiac, provavelmente as suas maiores referências. O terror, enquanto género, é provavelmente o mais difícil de executar. O jogo de expectativas, a atmosfera, a força das personagens, as regras do subgénero em que insere numa lista tão vasta que vai de assassinos a lobisomens, aliens ou fantasmas, e o facto de ser um género necessariamente de nicho e de adrenalina, tão sedutor para realizadores, muitas vezes jovens, cheios de ideias para concretizar, tudo contribui para provavelmente uma excessiva carga de pressão e exigência sobre estas produções. Por outro lado, Longlegs fez a sua própria cama com esse marketing esmagador segundo o qual a própria Maika Monroe viu pela primeira vez o caracterizado Nicolas Cage já filmando uma das suas cenas, determinando a sua real reacção perante a revelação do antagonista. A atmosfera criada por Perkins é altamente eficaz. Um filme lento, em construção, onde o horror e a insegurança são constantemente uma presença. Recordemos a cena na casa de campo, onde Monroe está sozinha quando ouve alguém do outro lado da porta. A antecipação da personagem de Cage também constrói na perfeição a tal adrenalina que normalmente associamos aos grandes monstros. As referências ao satanismo, as memórias quebradas, tudo está bem montado, por vezes relembrando a primeira temporada de True Detective naquela América rural desolada. Tudo corria de feição e em crescendo até ao terceiro acto do filme. A sua conclusão excessivamente facilitista quase deita tudo a perder, como se o filme tivesse espremido as suas ideias até um beco sem saída que desilude, mas ainda assim é difícil justificar com isso a derrota de toda a sua excelente construção. Longlegs terá provavelmente um belo percurso à sua frente.
David Bernardino
Half psychic is better than non-psychic at all. E Longlegs é muito half-qualquer coisa. Uma primeira parte bastante sólida (e sobejamente sinistra), entre um bom Fincher e Kiyoshi Kurosawa em americano, acabará por tentar construir um diálogo difícil com o muito que o filme aborda na sua segunda metade (e esqueço-me um pouco de onde nos situamos exactamente nos três capítulos do filme). Um velho cliché, talvez, mas, as fragilidades serão de facto notórias a partir do momento em que o desenlace, embora ainda longe, começa a desenhar-se. A boneca escondida na Quinta dos Camera (que nome tão curioso), a conversa com Carrie-Anne, e o filme como que se desfaz em pedaços de imagens mais ou menos (ou progressivamente mais) concretas, onde anteriormente tudo era interrogação. Como agravante, o argumento é bastante complicado, e tentará organizar essas peças em torno de uma temática sobrenatural não inteiramente justificada, que, demorando muito tempo a evidenciar-se, acaba por nunca encontrar o lugar devido no filme. Efectivamente, no terceiro capítulo, teremos um pouco de tudo, e é nesse trecho aberto (e desarrumado) da narrativa que o filme ficará muito mais previsível e menos assustador, pelo relativo despropósito do encadeamento de ideias. Entre a freira, a mãe, e a festa da pequena Ruby, existe algo de terrivelmente conveniente num filme que sempre fora muito mais interessante quanto mais opaco. E se Nic Cage não será propriamente o foco do desequilíbrio do filme, o seu exuberante palhaço monstruoso glam do interior americano, embora divertido, será a imagem perfeita do imbróglio que Longlegs não conseguirá resolver. Hail Satan, mas… nem tanto.
Miguel Allen
Uma campanha de marketing à procura de um filme. O que Longlegs promete com um encadeamento indefinido de várias ideias potencialmente interessantes, no início de pendor mais policial, desmorona-se à medida que a narrativa vai descolando das óbvias influências (Seven e Zodiac, de Fincher, o universo de Hannibal Lecter e Cure, de Kiyoshi Kurosawa) e saltando de cliché em cliché rumo à (absurda) exposição final. A importância das pistas é trocada pela estética da sua investigação (os cartões simetricamente dispostos no chão), o police procedural descartado a meio e trocado por um rumo sobrenatural que só funcionaria se sentíssemos alguma dor, ou vida, por detrás das maquínicas personagens. Pior, é um rumo que, por surgir envolvido num chorrilho expositivo, soa a desistência, isto é: a uma forma preguiçosa de resolver uma narrativa que se complicara demais. Nicolas Cage faz o melhor que pode, numa performance em que todo o exagero, por uma vez, o faz desaparecer na personagem e não o contrário. Estava na nota certa, mas foi mais um dos lesados de um guião que tanto investe em Longlegs como o trai, ao transformá-lo num acessório (como faz, de resto, não só com as outras personagens mas com quase todos os plot points). À parte esta debilidade mais óbvia, a cinematografia, a banda sonora e a montagem são intrusivas ao ponto de quererem forçar o pouco real Terror que aqui existe, mas também de adensar o empadão tonal que é incapaz de se decidir entre o policial televisivo (aquelas tenebrosas montagens de relatórios criminais…), a comédia de terror (hail satan *wink*) e o hillbilly gothic (fantoches, satanismo). Um filme em desnorte, preso aos maneirismos do seu autor, que ao invés de sustentarem a atmosfera roubam a atenção para si próprios, e incapaz de manter qualquer mistério (com a agravante de repisar todas as explicações para cada acontecimento). Se algum ponto positivo houver estará na caracterização de Cage. A figura de Longlegs não se esquece tão cedo.
Gil Gonçalves